17 de março de 2024

Enquanto houver...


Enquanto houver memória

dos tempos de servidão


Enquanto houver coragem

a animar um coração


Enquanto houver uma voz

disposta a dizer Não!


Enquanto houver vontade

de acordar a multidão


Enquanto houver uma luz

rasgando a escuridão


Enquanto houver esperança

na rima de uma canção


Os cravos não murcharão

os cravos não murcharão.


Carlos Alberto Silva

Ilustração de Ana Paula Otero para o livro «A revolta dos lusecos».

1 de dezembro de 2023

Entardecer outonal


Entardecer outonal:
sobrepõem-se as tintas
do poente
às sombras do olival.

13 de setembro de 2023

Eu vi o futuro envelhecer


Eu vi o futuro envelhecer,
no espelho onde todos os dias me barbeio.
Um futuro que acordou, novinho em folha,
naquela manhã de abril gloriosa e limpa
cujos ecos ressoam ainda no éter da memória.
Era um jovem de 15 anos, tal como eu,
pleno de ideais adolescentes
de um mundo justo, de uma nova história.
E os olhos brilhavam-lhe com a certeza
de que a estrada à sua frente seria
um épico romance em que o amor tudo vencia.

E tudo haveria de valer a pena:
todas as canções, todas as flores,
todos os poemas titubeantes,
todas as alvoradas a anunciar o dia,
todas as lutas, todas as dores,
todos os beijos, todos os abraços,
todos os gritos de pura alegria,
todas as danças, todos os passos
marcados na poeira dos caminhos.

Mas, 50 anos depois, vejo que o futuro mentiu.
E nos seus avanços e recuos
ao longo da estrada que para trás ficou,
perjurou, falseou, traiu,
deixando apenas pela metade
as belas promessas que cantou.
Podeis argumentar que parte dessa tragédia
é culpa minha, culpa nossa,
porque não fiz, não fizemos, o suficiente,
na tecitura fluída do presente,
para que o futuro se mantivesse
moço e fresco como a utopia
com que fomos adoçando cada dia.

De que nos vale isso agora,
se nos soube a pouco a vida
e o futuro nos escapou por entre os dedos
e simplesmente envelheceu?

50 anos depois daquela manhã gloriosa e limpa,
do outro lado do espelho
onde todos os dias me barbeio,
há apenas um rosto vago, de olhar turvo,
à luz parda do sol de outono,
e o vai e vem da lâmina de barbear
num movimento errático e surdo,
fustigando a alma desiludida.

Carlos Alberto Silva
13/09/2023

29 de junho de 2023



inspiro o aroma da tarde

nas fímbrias do Verão

acabado de chegar


cheira a alecrim

a erva recém cortada

e a fruta a amadurar


refresco os olhos

num breve fio de prata

que bordeja o pomar


as águas ainda gélidas

trazem memórias de infância

no seu doce murmurar


e o meu pequeno mundo

torna-se vasto e inteiro

apenas num olhar


Carlos Alberto Silva

29-06-2023


25 de abril de 2023

Trovas de Abril


Não morreu ainda o sonho
Feito verdade em Abril,
Por muito que alguns queiram
Levar-nos de novo ao redil.
Não morreu, mas fica em risco,
Se adormecermos ao soalheiro,
Deixando livre a tribuna
Aos lobos com pele de cordeiro.
Por isso, vamos, alerta,
Unidos contra a mentira.
Está em causa a Liberdade
E essa ninguém nos tira.
Para que o sonho conquistado
Nesse dia sem idade
E as promessas que deixou
Continuem a ser verdade.

14 de abril de 2023

Na glicínia em flor

Na glicínia em flor -
Um zumbido anuncia
O labor da abelha.

5 de abril de 2022

Do brincar

 


Pegas-me na mão e dizes:
- Anda, vamos brincar.

Mas eu respondo:
- Não posso. Agora, não.
Não tenho tempo para jogar.

Ao ver no teu rosto
A sombra da desilusão,
Ensombro-me também eu.

Recordo, num canto
Da prateleira, esquecido,
Um velho brinquedo
Que um dia foi meu.

E dou conta que o menino
Que já fui e em mim mora
Ganha pó, adormecido,
No esconso museu
Do meu coração.

Algo em mim estremece.
Lembro, num baque,
Que o tempo acontece,
Gozemos nós dele ou não.

Acordo então o tal petiz
Do remanso dos dias
Em que fui feliz
E refaço a resposta:

- Agora, sim, pode ser.
Vamos, vamos brincar,
Porque brincar é viver.

16 de janeiro de 2022

Penteia-se a donzela


Penteia-se a donzela
Reclinada em verde manto.

Não é de oiro o pente
Ou de seda a camisa.

Mas nem por isso
é menos bela...

O seu cabelo de pétalas
Quem o penteia
É a brisa.

18 de junho de 2021

Melro à chuva

(Foto de Maria Júlia Laginha / Perspetivas do olhar)

Debaixo de chuva,
canta o melro
com grande prazer.
Talvez porque saiba
que é esta
quem lhe dá de comer.


 

1 de abril de 2021

Formiga



Dona formiga
rabiga
carrega
sua migalha
para encher
a barriga.

Diadema



A chuva abraça a rosa
adornando-a com
um diadema de pérolas.

31 de março de 2021

Uma estrela



Perfuma-se a noite -
no ramo da laranjeira,
pousou uma estrela.

21 de março de 2021

No dia da Poesia


Brincos de princesa -
Não há maior poeta
Que a natureza.

19 de março de 2021

a canção da nora

 


Tangida pelo rio,
O que canta a nora?
Alegre para quem ri,
É triste para quem chora.


Numa poça de chuva

balançando na brisa -
há barquinhos das fadas
numa poça de chuva

25 de fevereiro de 2021

o beijo da chuva



o beijo da chuva
amanhece
a magnólia florida

24 de fevereiro de 2021

a minha bandeira


a minha bandeira
é feita com a luz e o riso
dos dias perfeitos

rompendo a sombra
e a mágoa
dos sonhos desfeitos

adejando ao vento
com o marulhar
único da água

11 de fevereiro de 2021

Sonho cor-de-rosa

sonho
cor-de-rosa

como um bando
de flamingos
repousando

florescem
os braços nus
da magnólia

6 de fevereiro de 2021

Rendilhado

Foto e texto de Carlos A. Silva

entre os inertes despojos
que o gélido vento
arrasta
só um frágil rendilhado
na desfolhada folha
resta

24 de outubro de 2020

A menina dos teus olhos

 


Nos teus olhos
há uma menina
Que chora quando estás triste
E ri quando estás feliz.

Também nos meus
Há um menino
Que chora quando tu choras
E ri quando tu ris.

20 de setembro de 2020

Cactos


 

25 de abril de 2020

Liberdade

Ilustração de André Carrilho (DN)

A Liberdade
é como uma planta
frágil e bela
num campo aberto
ou num vaso à janela

Não basta a labuta
de lançar
a semente no chão

É preciso cuidar dela
ampará-la no calor da luta
e nutri-la com o ânimo
de uma canção.

25-04-2020

2 de fevereiro de 2020

a fada da maresia


tece à luz da manhã
a fada da maresia
perlando de gotas de orvalho
a teia vazia

à flor do tojo


De rojo
no fojo
o tojo
emudece.

Brilha o sol
e o tojo
com arrojo
amanhece.

5 de janeiro de 2020

As nuvens não têm casa


As nuvens não têm casa
- a sua casa é o mundo.

Deixam-se ir nos braços do vento
de terra em terra
e de mar em mar
- vão de quarto em quarto, pela casa.

Por vezes, viajam depressa,
como se estivessem ansiosas
por aportar algures
- têm pressa de chegar a casa.

Outras vezes, vão muito devagar,
como que saboreando
todos os detalhes da paisagem
- querem conhecer todos os cantos à casa.

Carregam a esperança
de um vida renovada
nas gotas da chuva que aspergem
sobre as criaturas sedentas
- cuidam do mundo, cuidam da sua casa.

Assim fôssemos nós, como as nuvens
e o mundo fosse também para nós
a nossa casa.

11 de junho de 2019

Tílias em flor


Tílias em flor -
Embriagam-se as abelhas
Com seu doce odor.

19 de abril de 2019

Bola de sabão


À Élida, com amizade

Bola de sabão ao vento
Bailando ao sol da tarde
Num arco-íris de espuma.

Voa por um momento
Sobre a terra seca
E desfaz-se em coisa nenhuma.

Mas logo outra e outra
Se elevam no ar
E continuam a dança.

Relembrando aos incréus
Que a última coisa a finar
É a esperança.

Cidade da Praia

20 de março de 2019

O baile do Equinócio

No baile do Equinócio, as árvores de folha caduca exibem os seus vestidos de tule verde-leve. Penteadas pelo vento, agitam os braços numa saudação:
- Bem-vinda sejas, Primavera!

12 de fevereiro de 2019

Folha ou pássaro

Uma folha
ou um pássaro
adeja nos braços
irrequietos do vento

Um pássaro-folha
de asas nervosas
rabiscando a tela
do horizonte

Uma folha-pássaro
de bico ávido
sorvendo o azul
saboreando a luz

Se folha
se pássaro
tanto faz

O que importa
é a vertigem do voo
que me fascina
e seduz

20 de novembro de 2018

Ninho vazio



no topo da árvore
despida pela ventania
- um ninho vazio