28 de dezembro de 2004

barcos

chegam de madrugada
com suas vestes pálidas
desfraldadas ao sabor da brisa

cavalgando
o corpo sinuoso das ondas
como potros fumegantes

recolhem as asas
abertas
no limiar das águas

e adormecem extenuados
sobre as areias
os braços erguidos para o alto

25 de dezembro de 2004

à Alix de Carvalho

trajando o vestido azul e roxo
do crepúsculo
a lua sorridente
veio dar um beijo furtivo
ao sol poente

morta de ciúme
pelo que acabara de ver
a chuva cerrou o dossel das nuvens
e chorou até adormecer

devagarinho
a lua entreabriu a portada
e derramou os seus pálidos cabelos
sobre a campina prateada

24 de dezembro de 2004

Natal

Os primeiros a chegar foram os pastores, acompanhados do balido dos rebanhos, guiados pelo brilho das estrelas. A eles se seguiram outras gentes de porte humilde, a pele tisnada pelo sol e pelo calor da forja, as mãos calejadas pelas ferramentas rudes. Só depois vieram os sábios com as suas vestes solenes e as suas ofertas preciosas. Mas a todos se amaciou o coração ao ver o sorriso precoce daquele menino iluminando a noite fria. E foi Natal.

É noite do galo -
no presépio da aldeia
sorri um menino

evocando o milagre
da vida que se renova

20 de dezembro de 2004

agitam-se no teu olhar
as águas
de um mar revolto

e o vento do deserto
incendeia a tua pele

que tempestade é essa
que te amotina o sangue

nesta alvorada
de baunilha e mel?

19 de dezembro de 2004

a nostalgia dos poetas

(uma homenagem à lusofonia)

a nostalgia dos poetas
enche de ocultos sentidos
a língua que falo
a língua que falas

debatem-se os poetas
com as palavras que os habitam
escondidas debaixo da pele
como animais domésticos
à espera de um afago

e penteiam-nas meticulosamente
com o metal dos aparos
nesse delicado compromisso
entre o amargor da tinta
e a limpidez opaca do papel

folheiam
com os dedos manchados de azul
uma gramática ancestral
herdada da secreta errância dos povos
entre a dor e a alegria

e trazem na alma a compaixão
pelas difíceis coisas simples
que o sangue esconde
e a noite cala

acorrentados à sua impossível condição
nas brumosas masmorras deste país
que ao nascer da aurora se faz verde
e negro se torna ao poente de tanto esperar
todos os dias resistem os poetas
contra o medo e o olvido

e as palavras
libertas do seu quotidiano jugo
enchem o peito dorido dos poetas de desejo
de um destino para além da história

é o amor dos poetas pelas palavras
que torna possível
que as fronteiras desta pátria
se estendam entre a minha
e a tua língua

e que um dia o nosso abraço
se encontre
dos dois lados deste mar

13 de dezembro de 2004

epidemia de natal


um bando de fogueiras aladas
atravessa os céus da avenida
e faz ninho nos postes de iluminação pública

estrelas carnívoras e gigantes cristais de gelo
apoderam-se das copas das árvores
donde escorrem longos pingentes de luz

uma miríade de seres eléctricos
toma conta dos mais improváveis recantos da cidade
e reinventa a claridade na longa noite invernosa

as gentes são tomadas de amnésia
e obliteram o quotidiano sobressalto da violência

feitas erráticas mariposas
esfregam os narizes no aquário das montras
como se disso dependesse a sua sobrevivência

sorvem avidamente o ar frio da noite
e suspiram
mergulhadas numa nostálgica felicidade
envenenada pela ideia de uma infância que nunca viveram

mas a chuva continua a ser tão húmida e viscosa como sempre
e fora do halo luminoso do consumismo
a noite continua a ser tão escura como todas as noites escuras

que estranhos fenómenos provoca a epidemia do natal

11 de dezembro de 2004

à Monalisa (http://sitiodasaudade.blogspot.com/)

provei o teu sangue
agridoce
e enlouqueci

ó laranja de oiro

és uma réstia de sol
que eu colhi

10 de dezembro de 2004

verde é o trevo
que atapeta o chão
que pisas tão verde

verde a luz do bosque
ao fim do dia

verde é o desejo
que incendeia o corpo
deitado no trevo

verde o teu olhar
de maresia

8 de dezembro de 2004

Caçada

é noite de lua nova

os homens reúnem-se
entre as estantes da biblioteca
para a grande caçada
ao verso branco

procuram todas as pistas
todos os rastos
no ventre
dos livros mais antigos

é aí que o bicho
provoca mais estragos

é aí que a sua existência
é mais insidiosa
mais repulsiva
mais nefasta

os caçadores espiolham
a palidez do papel
em busca dos traços
imperceptíveis da fera

com redobrada cautela
seguem a marca
das suas pegadas

e mal vislumbram
o vulto vago do animal
assestam as armas

apontam à cabeça
e desferem sucessivos disparos
até que este se estatele
inerte no solo

depois lavam as mãos
devagar
e bebem vinho tinto
até de madrugada

7 de dezembro de 2004

testemunha do luminoso
bailado das chamas

o aplauso mudo
das cinzas na lareira

e um leve odor a fumo
temperando a alvorada

4 de dezembro de 2004

debaixo da capa
manchada
pelo afã dos dedos

na cálida pulsação
das palavras

o livro respira

e nele respira o poeta

27 de novembro de 2004

da vida selvagem

na época do acasalamento
os garfos limícolas reúnem-se em bandos
e ensaiam elaborados cânticos

numa dança frenética e cega
exaltam as virtudes do sal marinho
e procedem então à desova:

um único ovo de metal dourado
que se recolhe no horizonte
quando a noite cai

25 de novembro de 2004

ao lume das palavras

na faina artesanal
da escrita

aqueço as mãos
adormeço a angústia

24 de novembro de 2004

fábula vegetal

para o povo da floresta
não há cemitérios
nem culto dos mortos

quando alguém se fina
o seu corpo é devolvido à terra
e sobre ele é plantada
uma nova árvore
que recebe o nome do defunto

para o povo da floresta
não existe morte
mas uma mudança de estado

na sua metafísica
os homens são as árvores
e as árvores são os homens

e a si mesmo se chamam
freixo tília plátano faia

23 de novembro de 2004

numa alameda
de azáleas rubras

velhas solitárias
tricotam palavras

da franja da tarde
desfiam memórias

e incitam os xailes
aos anseios do voo

os olhos perdidos
na vastidão do azul

21 de novembro de 2004

quando cair
a última folha

e o frio vier farejar
o seu corpo nu

a árvore adormecerá

indiferente
ao açoite da chuva
e ao ganido do vento


no coração da árvore
- bem lá no fundo -
abriga-se a primavera

19 de novembro de 2004


(Reflexo de ti - Maria José [Zé alentejana] / 1000imagens)

o rosto no espelho

devolve em traço lento
o resultado
da escrita do tempo

17 de novembro de 2004

janelas em fogo -
o reflexo do poente
sobre o casario

14 de novembro de 2004


(Diabo marinho - José Fagundes / 1000 imagens)

ó medusa de vidro
com escamas de alabastro

sustem teus candelabros
sobre o rio das trevas
que eu quero atravessar

com serapilheira
tábuas pregos e chapa
construí o meu batel

e lá vou agitando
às cegas
estas asas empalhadas

procurando no reverso
da sombra
a face oculta do desespero

11 de novembro de 2004

castanhas.gif

abrem-se em sorrisos
os ouriços

tombam maduras
sobre o tapete de folhas
as castanhas

são as mãos do castanheiro
estendidas a quem passa

em oferenda

9 de novembro de 2004

Renascer para um sorriso.jpg
(Renascer para um sorriso - José Fagundes / 1000imagens)

do delicado sabor
das flores
entendem as abelhas
que gravitam
no jardim do teu olhar

8 de novembro de 2004


(Intimidades - José Fagundes / 1000imagens)

conta-me uma história

deixa-me encostar
a cabeça no teu regaço
e ouvir brotar em ti as palavras
como a água cristalina
das nascentes


conta-me uma história

e eu ignorarei
todas as calamidades
que hoje aconteceram
que hoje te aconteceram
que hoje me aconteceram


conta-me uma história

e eu partirei
nesse mesmo instante
em busca do maravilhoso cristal
que cura todos os males
e satisfaz todos os desejos


conta-me uma história

e eu adormecerei
embalado pela tua voz
esquecendo que amanhã
será talvez outro dia terrível

6 de novembro de 2004

mandala

mandala.gif

ergueu a mão
traçou um círculo no ar
e uma ave sem nome
pousou no seu olhar

e disse:

pensar não é ser

o pensamento não é mais
que a sombra das coisas
à luz do luar

enquanto as trevas vêm e vão
a vida é como a água
que escorre por entre os dedos
e se some no chão

mesmo sem asas
é preciso viver

é preciso voar

4 de novembro de 2004

Por entre o vazio da noite - Jose Fagundes.jpg
(Por entre o vazio da noite - José Fagundes / 1000 imagens)

pela manhã a névoa
é uma casa vazia

viceja sobre as pedras
um pássaro de gelo

exala a ribeira
o odor da véspera

e um animal trémulo
impacienta-se
à espera do sol

3 de novembro de 2004

o dedo de Galileu

.
.

den
tro d
e uma
redom
a de cr
istal o
dedo i
ndicad
or de G
alileu c
ontinua
a apont
ar o céu.
dos ven
eráveis i
nquisidor
es, nem pó.

Mais exactamente no Museo di Storia della Scienza em Florença

2 de novembro de 2004

desdactilografia

elogio_da_escrita - A_Matias.jpg
(Elogio da Escrita - António Matias / 1000 imagens)

alinham-se imóveis
as letras as palavras
as frases e os parágrafos
contra a branca parede
do papel

há um curto silêncio

subitamente
os dedos martelam
furiosamente as teclas

e as teclas correspondem
enchendo o ar quieto
de estampidos secos
e o papel de negras marcas

letras palavras
frases e parágrafos
desfalecem sob
a violência do impacto

e caem moribundos
no fundo da página

1 de novembro de 2004

Intimidades - Antonio Melo.jpg
[Intimidades] - António Melo / 1000 imagens

sobre a cama desfeita
a tua silhueta nua

a claridade da lua
tingindo a face da noite

adormece
o rebanho das palavras
entre as pregas do lençol

na doce memória
de um beijo
- o desejo

31 de outubro de 2004

desenhar.jpg
(Foto de Carlos Fernandes)

As cantigas da passarada são por momentos abafadas por um outro chilrear mais estridente e vivo: o das crianças em volta de uma nova brincadeira. Correm e saltam. Agora desenham e pintam. Na longa tira de papel, uma sucessão de signos coloridos relata a alegria destes pardais sem asas. Embalados por um sonho sem limites, os seus olhos ingénuos esvoaçam no traço meticuloso do pincel. Brincam. E brincando projectam o futuro.

brincam os gaiatos
como pardais saltitando
de ramo em ramo

desenham um novo mundo
embalados pelo sonho

29 de outubro de 2004

simplicidade.jpg
Simplicidade - Teresa Rosa / 1000 imagens

oculta
na tua torre barroca

fundada no cristal
de uma gota de água

escutas
a respiração das aves

e bebes o perfume
das boninas sobre a frágua

- acorda princesa
desse encantamento

é aqui
o reino da mágoa

28 de outubro de 2004

Luz-e-tormenta.jpg
Luz e tormenta - José Fagundes / 1000 imagens

ímpar denso concreto
inconformado

o olhar do homen
colige os ocultos sedimentos
da consciência

e precipita
a erosão dos deuses

(que há muito
o deixaram só)

27 de outubro de 2004

malmequer.jpg

bem te quero
malmequer

minha calêndula
silvestre

pequeno sol
sorridente

neste jardim
dos afectos

26 de outubro de 2004

assinatura.jpg
(Assinatura - António Matias / 1000 imagens)

como animais
pressentindo a tempestade

enroscam-se as palavras
no abrigo da página

à espera de uma voz
que as desate

25 de outubro de 2004

pimenteiras.jpg

línguas de fogo
maduras
suspensas da pimenteira

guardam o ardor dos beijos
que os teus lábios prometeram

e não deram

24 de outubro de 2004

há um peixe dourado
nadando no teu olhar

traz um recado

a ave do coração
fez ninho
na concha da tua mão

19 de outubro de 2004

Water_cristals_JMOSilva.jpg
(Water Cristals - J M Oliveira Silva / 1000 Imagens)

chove -

uma líquida flor
se despenha
do precipício das águas

e pétala a pétala

escreve o teu nome
no rosto da vidraça

18 de outubro de 2004

no abraço
do vento

quem será
que suspira?

16 de outubro de 2004

no princípio era a mãe

a rósea placidez do útero
a candura do peito
o aconchego do feno

e o arcano germinou
na carne translúcida
dos dias

e o coração se consumiu
em dor e lume

e o lume se fez pássaro

e o pássaro entardeceu
enigmático e só

e dele restam apenas
o legado do sangue
o frágil bafo das palavras

o verbo

o verso

12 de outubro de 2004

brancas são as pombas
esvoaçando entre os
brancos castelos de nuvens
nesta mimosa tarde
branca

verdes são as folhas
agitando-se entre os
verdes braços das árvores
nesta viçosa tarde
verde

azuis são as horas
escoando-se entre os
azuis dedos do tempo
nesta ociosa tarde
azul

brancas verdes azuis
são também as palavras
que não é preciso dizeres-me
nesta gloriosa tarde
branca verde azul

11 de outubro de 2004

vivemos um tempo
de anestesia

em que o aço impuro
do excesso
roça a garganta do tédio

assomam à janela
os heróis do efémero

e a vida fica refém
da reles intriga
de um reality-show

10 de outubro de 2004

nuvem:

passa melancólica
uma ave tardia

e logo se desfaz
chorosa
e fria

9 de outubro de 2004

imaginem

(a John Lennon)


imaginem

que o ódio não fosse mais
que um passageiro equívoco

e não houvesse morte

e que a alma fosse verdade

e a memória do tempo
fosse eterna

e que mesmo que o corpo
se dissipasse
e dele não restasse
mais que um rasto de cinza
continuássemos a viver
nos olhos daqueles que amamos
e nos olhos daqueles que amam
aqueles que amamos

imaginem

imaginem

8 de outubro de 2004

enche-se a solidão
dos caminhos
de negras lágrimas

que os dedos da ventania
fustigam o útero abandonado
das oliveiras

6 de outubro de 2004

(ao Armando Leal)

sobre as folhas secas
o outono
reclina a cabeça

e descansa os olhos
no algodão celeste

3 de outubro de 2004

O sono da casa



Já nada fala do riso das crianças, do odor da lenha ardendo no borralho, da paciência do gado no curral, do sussurro da chuva no telhado. Que as telhas são, elas próprias, descompassada chuva a caminho do chão. E a madeira retoma a via da natural corrupção. E as paredes se conformam a devolver ao horizontal descanso as pedras que a terra emprestou para esta aventura de ser casa. E as ervas recuperam lentamente um território que é seu. Até que nova aventura se erga em seu lugar.

corpo adormecido
nos braços rudes do tempo
a casa se esvai

tornam as pedras às pedras
e o barro volta ao barro

2 de outubro de 2004

À Monalisa
http://sitiodasaudade.blogspot.com/

verde é a viagem

despenteiam-se as palavras
sobre a túnica do mar
- rebrilham de iodo e sal

e o traço das gaivotas
escreve a espuma no olhar

1 de outubro de 2004

Outubro pendurou
réstias de sol
nos braços do marmeleiro

e entregou-se
à letargia da bruma

sonhando
com seios dourados
vestidos de tule branco

26 de setembro de 2004

o calor é um aparo
que lavra
o pomo da tarde

o gado rumina
o espinho da sede
no amargor dos cardos

à sombra da urze
emudece o sangue

sobre a pele nua
se desenlaçam
as pétalas azuis do desejo

24 de setembro de 2004

o ócio das aves
fecunda o azul de signos
breves inexactos

22 de setembro de 2004

o Outono
incendeia a vinha

entregues os cachos
ao rito sacrificial
das adegas

amadurece a rubra ninfa
no segredo dos tonéis

21 de setembro de 2004

padrão de me descobrir
trago na cabeça um barco

moldado na areia húmida
por umas mãos pequeninas

a vela de espuma branca
o cordame de algas finas

a bandeira hasteada
é uma pena perdida

só não sei que rumo leva
se chega ou vai de partida

19 de setembro de 2004

ter como filosofia
a indolência
de um peixe flexível

o zelo das varinas
no gingar das ancas

a minúcia do gato
que verifica
músculos e tendões

menos natural seria
o regresso doloroso
ao abismo dos livros

peixe varina e gato
vagueando
sob a página da língua

16 de setembro de 2004

......................parábola
........................pára a
......................... bola
........................disse o
...............senhor é preciso
...........que vos deixeis seduzir
...pela doce cintilação hipnótica da
palavra contingente para que possais
..permanecer agrestes e indiferentes
....e nada vos consinta distinção dos
....outros bichos da criação excepto
.......talvez na estúpida crueza da
..........vossa ferocidade e assim
..............vos mantenhais pelos
..............séculos dos séculos
.................sangue que sois
.......................e medula
.........................e osso
...........................diss
..............................e
..............................e
.............no ar girou como um pião

15 de setembro de 2004

um sopro
nada mais que um sopro

esse teu sorriso
de menina

dobando
o novelo da neblina

- e a rua
toda se ilumina

12 de setembro de 2004

a eloquência do verão
tomba com as folhas mortas
na pele versátil da tarde

símbolo fecundo
ou equívoco voluntário
da árvore

num esgar de comédia
o artifício das estações
enche de rugas a cidade

11 de setembro de 2004

(ao Carlos Fernandes)

reclinou-se o sol
nas pedras do velho muro

tecendo com
os frágeis fios da aranha
uma teia de luz

9 de setembro de 2004

as moscas

(contra todas as violências)


heréticas e impuras
como os metálicos insectos
cujo silvo escalda os ares
e retalha as carnes

esfregam as patas
alisam as asas
zumbem em surdina

fazem da morte seu alimento
as moscas

8 de setembro de 2004

oração perplexa

escuro fóssil
de carnívora qualidade

medusa errónea de sangue quente
afagando o marsupial abdómen
do tempo

cavalo em chamas
os cascos devorando o trópico
da aurora boreal

pulmão servil
esporo ancestral
ave translúcida
raiz atónita

hemisférica ossatura
imune ao sexo

ora pro nobis

6 de setembro de 2004

erguemos a nossa casa

(à Isabel)

erguemos a nossa casa
no dorso agreste da falésia
cravadas as raízes
no duro músculo da pedra
e os olhos das janelas
atentos ao brilho do horizonte

erguemos a nossa casa
no ventre fecundo da planície
cravadas as raízes
na plástica carne da argila
e os olhos das janelas
atentos ao mover da seara

erguemos a nossa casa
nas entranhas húmidas da floresta
cravadas as raízes
entre as tenras veias das árvores
e os olhos das janelas
atentos à comoção da folhagem

erguemos a nossa casa
no peito rude da cidade
cravadas as raízes
na estéril rigidez do betão
e os olhos das janelas
atentos ao frenesim do tráfego

e nem a audácia das ondas
nem o uivo dos ventos
nem a bofetada da chuva
nem a fúria dos homens
abalaram a sua frágil argamassa
amassada com o teu e o meu suor

2 de setembro de 2004

tresmalhados pelo cio
os corpos dos amantes

buscando por si próprios

um no outro se confundem
um no outro se constroem

1 de setembro de 2004

(a Mark Knopfler)

ao afago brando
o ventre estremece

num gemido terno
da guitarra exangue

se esvai no éter
sua seiva quente

e aí desfalece

29 de agosto de 2004

manifesto

entre as flores simples
do outeiro
o sussurro volátil da abelha

na verdade mais singela
o sopro primordial
da poesia

28 de agosto de 2004

abres as asas
cristalinas
irisadas de luz

revela-se o precário
ovo da aurora

26 de agosto de 2004

Bailado estival


(Foto de Carlos Fernandes)

Como numa dança lenta, ondulante e sensual, o calor torna lânguidas as criaturas e convida a um «pas-de-deux» com as ondas refrescantes. A brisa comanda o valsear das nuvens e anima o serpentear vertical das árvores. Em delírio, mar e céu se irmanam, saboreando o grande baile estival. Exalta-se o esplendor dos corpos maduros. É Verão.

no fervor da dança -
o devaneio dos corpos
celebra o estio

bulindo num vai e vem
igual às ondas na praia

25 de agosto de 2004

Fruto luminoso -
por detrás do marmeleiro
amadurece a lua

24 de agosto de 2004

transfiguram-se
as ervas ressequidas
na vaga claridade
do entardecer

corpos enegrecidos
agitando-se no contraste
da tela azul rosada

espectros balançantes
rabiscando
na página translúcida da brisa
uma última elegia

21 de agosto de 2004

desdobrado
o negro manto
da noite

o céu estrelado
é como veludo
bordado a diamantes

onde cintila
o sorriso diagonal
da lua

- também tu sorris
enquanto dormes
e sorrindo cintilas

17 de agosto de 2004

fim de estação

há um desassossego de alma
no clamor do vento
que reverbera
a grossa barreira das paredes
e faz estremecer a casa

uma fúria incontida
que desconjunta
o corpo flexível das árvores
e torna rastejantes
as ervas dos caminhos

como se
as vísceras da mãe terra
se amotinassem
num inconformado adeus
ao calor estival

16 de agosto de 2004

com a sua húmida língua
o mar refresca
a pele ardente da praia

e num sussurro
se abandona
à luz violeta do poente

13 de agosto de 2004

onde a espiral do vento
acaricia a seara

e o brilho do mármore
transfigura
o ténue rosto da lua

a noite muda de pele

8 de agosto de 2004

nas amoras dos silvados
ainda róseos de flores

nas maçãs lavadas
pela chuva estival

nos cachos de uvas
tintas de sol

no canto agudo
do melro

Agosto amadurece

5 de agosto de 2004

o poeta perguntou ao grilo
onde arranjava ele
tanta energia
tanta inspiração

e o grilo pediu-lhe
que olhasse em volta

e visse

sob o oiro do sol
a amena curva dos montes
e o alegre saltitar dos rios
e riachos

sobre o rumor das árvores
o voo travesso dos pássaros
e o suave deslizar
das nuvens

entre as flores dos prados
a azáfama das abelhas
e a indecisa dança
das borboletas

e disse

- agora repara
como é tudo tão belo
tão precioso

e eu só tenho
para os cantar
o tempo de um Verão

3 de agosto de 2004

o poeta abriu
a gaiola das palavras
e ficou a ver
a sua metamorfose
no contacto com o brilho
do sol matinal

umas tornaram-se
coloridas borboletas
e pousaram
na corola das flores

outras transformaram-se
em brancas pombas
formaram um bando
e desapareceram no céu

algumas houve
que se transformaram
em irrequietas libélulas
outras em velozes falcões
outras ainda
em sonolentos morcegos

tornadas insectos
aves
ou mamíferos voadores
todas partiram
batendo as asas

excepto uma
que pousou na mão do poeta
nela se aninhou
e adormeceu

o poeta acariciou-a
muito de mansinho
e iniciou com ela
um novo poema

2 de agosto de 2004

flutuam as palavras
como bolas de sabão
à volta da cabeça do poeta

após um momento de fulgor
rebenta uma
e outra se desfaz
e outra e outra

e logo uma dúzia delas
novas coloridas brilhantes
grandes e pequenas
surge pairando no ar

o poeta pega na rede
uma fina rede de caçar palavras
e vai no seu encalço

agarra uma aprisiona outra
liberta a primeira
junta uma segunda e logo outra
solta-as todas de novo
e de novo recomeça

depois de um tempo
nesta efémera colheita
o poeta pega nas palavras
que capturou
e põe-as a dormir
no seu bloco de notas

entre estas escolherá
as que vai usar nos seus poemas

1 de agosto de 2004

Em Darfur



negra é a tua pele

negra a tua fome

negro o medo
que te obriga a fugir

negro o choro
do filho que apertas
no desespero de um abraço

negro o teu futuro
sem futuro

mas mais negro ainda
que a mais negra das noites

é o negro coração
de quem te atormenta

30 de julho de 2004

frágil é a mortalha
em que se oculta o silêncio

e uma trupe sussurrante
dilacera
o negro útero da noite -

o frémito das plantas
nos dedos da brisa

a febre ruminante
dos insectos

todos os inquietos rumores
da madeira e da pedra

- alheios à ternura
abandonam-se os corpos
ao estertor dos sonhos

23 de julho de 2004

as tuas mãos

 a Carlos Paredes

as tuas mãos
são como asas
voando
no azul luminoso
do entardecer

as tuas mãos
são como água
correndo
cristalina e fria
pelas encostas

as tuas mãos
são como brisa
dançando
entre as brancas dunas
da beira mar

as tuas mãos
são como ondas
embalando
a alma impura
deste povo marinheiro

que chora
na tua guitarra

porque partiram já
as tuas mãos
deixando
o travo amargo-doce
da saudade

21 de julho de 2004

ó flor sem segredo
à mercê
de quem passa
 
vermelhos
são teus lábios
atrás da vidraça
 
borbulhando
no cristal
de um aquário triste
 
como os vermelhos
peixes de Matisse

20 de julho de 2004

O eco dos passos


Foto: Carlos Fernandes 
 
Na penumbra da charola de Tomar, o eco dos passos acorda o eco de outros passos mais antigos, mais solenes; o som das vozes evoca o murmúrio de outras vozes mais profundas, mais austeras: os passos e as vozes dos monges cavaleiros que empenharam tudo na busca dos grandes segredos da fé. E por isso se perderam, aniquilados pela cupidez dos poderosos. Do longínquo Oriente nos legaram os símbolos, as formas e as cores, plasmados numa arquitectura de grande devoção. Aqui, o seu testemunho permanece vivo e inspirador.
 
Há vozes e passos
vibrando na luz coada
da capela mor.
 
São os ecos dos Templários
em busca de Santo Graal.

19 de julho de 2004

Baile de Verão -
ao ritmo da minha rede
valsam as estrelas.

18 de julho de 2004

há uma fonte
que brota
das tuas mãos enlaçadas

e viaja nos teus olhos
o vai e vem das marés

semeias colhes e teces
o riso das desfolhadas

com a paciência das algas
com a mesma limpidez

hora a hora
segundo a segundo

fazes do peito a casa
fazes da casa o mundo


17 de julho de 2004

onde está a ilha
a secreta ilha
 
a ilha que eu sonhei
no mapa do teu olhar
 
fui em busca dela
e perdi-me no mar

na candura obstinada do teu corpo surreal:
o delírio das horas 
 
no sorriso das estátuas rasgado a cinzel:
a pele coriácea das horas 
 
na urze benzida pelo orvalho de Abril:
o pingar das horas
 
na insónia da ave à espera do sol:
a interrogação das horas
 
na voz amotinada rasgando o azul:
o anseio das horas

16 de julho de 2004

bates à porta

bates à porta. afagas as paredes com a língua do silêncio.
cravas as unhas na pele tenra da noite.
com mil anos de espera no sobrado dos olhos.
e a sede germinando oculta num vaso carmim.
 
bates à porta. para lá da entrada o ressoar das lajes.
o frémito da madeira. o gemido da cal.
o bocejo opaco da água. a claridade de um voo sem fim.
 
bates à porta. imitas o chilreio brando das aves pequenas.
as mãos que suplicam a submissão dos gonzos.
e adubas as asas com um braçado de lírios. antecipando o festim.
 
bates à porta. acendes a nudez da aurora com o teu corpo intacto.
sorris de mansinho. e como uma ladra profanas a porta fechada de mim.

15 de julho de 2004

com as páginas dos olhos
nos revisitamos
dentro dos livros

como num filme
em vertiginosa rotação

até que a luz do sol
nos devolva
à cegueira dos dias

14 de julho de 2004

a polpa da tua boca
na polpa da minha boca

numa ânsia louca
o beijo

da fruta
o sumo desejo

13 de julho de 2004

o ruído dos teus passos
alvoroça os cães
que gastam o dia
dormitando pelos quintais

é tão ténue
o ruído dos teus passos

mas os cães bebem no ar
o mais pequeno rumor
e ladram
para sacudir o letargo
que lhes tolhe o corpo

não é a ti que ladram
mas à certeza da morte

12 de julho de 2004

o poeta pastoreia
o insubmisso rebanho
das palavras
pela aridez da página

sopra-lhe nos cabelos
o vento agreste da montanha

fazendo vibrar
nas suas mãos desamparadas
uma oculta melodia

11 de julho de 2004

ó praias do meu país
que sonho vão lamentais?

que queixas são essas que
todo o dia suspirais?

o sol rompe o horizonte
doirando na maré cheia

e é do rude génio do mar
que nasce a mais fina areia

9 de julho de 2004

no palco

trémulo
com os olhos postos no abismo
o actor entrega-se
à vertigem do palco

e no âmago
da sua própria luz
de si mesmo se despoja
e se oferece
à volúpia do público

com quem reparte
o pão e o vinho
do seu corpo e da sua voz
na liturgia da cena

na comunhão do gesto
na comunhão da palavra

8 de julho de 2004

oculta na ramagem
do pinheiro manso

insiste a rola
em sua monótona
ladainha

será uma prece
ou um
queixume de amor?

7 de julho de 2004

uma vida

um rasto breve
de passos

o leve suspiro
da brisa

o brilho fugaz da lua
na areia tépida

logo diluídos
nos rumores da maré

4 de julho de 2004

à desfilada
como corcéis
as ondas

fugindo
dos galanteios
do vento

em espuma
se desvanecem
na praia

(sorrindo
deste namoro
o sol)

e ao fim da tarde
quem os acolhe
num longo abraço?

o mar

3 de julho de 2004

Entardecer


(a Sophia de Mello Breyner Andresen)

pairando nos reflexos do poente
a face cristalina da poesia

abraça o horizonte num lamento
perdida numa estranha nostalgia

e um eco singular rasga a falésia
vibrando em dolente melodia

é o verde dos pinhais a voz do mar
chamando mansamente por Sophia

30 de junho de 2004

andorinhas

(à Beatriz)

afagando
a pele enrugada do rio

as andorinhas
matam a sede em pleno voo

vêm e vão com a brisa
que brinca nos teus cabelos

enquanto nadas

rasando as águas
como as andorinhas

28 de junho de 2004

pessegos.jpg

a leve penugem
do pêssego

lembra a tua pele
arrepiada
pelas minhas carícias

27 de junho de 2004

serei eu o barco

serei eu o barco
abraçado à margem

que pergunta às nuvens
que passam
pela emoção da viagem

que nunca viu
na vastidão dos mares
senão uma miragem

que se contenta
com o sorriso da lua
sobre a quieta paisagem

e olha no espelho
das águas onde apodrece
procurando a sua imagem

serei eu o barco
ou uma sombra de passagem

26 de junho de 2004

ameixas.jpg

Pomar perfumado:

rubros como ameixas
os teus lábios
adoçam os meus

25 de junho de 2004

cereja.gif

há cerejas penduradas
nas tuas orelhas

e há em mim
um desejo irreprimível
de as mordiscar

Verão

São como lumes
crepitando
entre a folhagem.

Ó águas do rio:
mandai calar as cigarras.

A vós me entrego -
à míngua de frescura
à míngua de silêncio.

24 de junho de 2004

melancias1.gif

Água na boca:

em tuas maduras
e doces melancias
meus olhos se lambuzam.

23 de junho de 2004

Chuva de Verão:

um líquido véu
envolve a copa exuberante
da tília.

Ao cheiro da floração
mistura-se
o da terra molhada.

Vês aquela ave
sobrevoando
a palidez do horizonte?

Recolhe-se agora
à tépida convicção
do ninho.

Assim o teu rosto
atrás da vidraça.

22 de junho de 2004



os peixes beijam a luz
espelhada
na tranquila superfície
das águas
do rio

e assim transitam
entre o fogo e o gelo

21 de junho de 2004

Há um estranho insecto
percorrendo ansioso
a brancura do papel.

Deixa atrás de si
um rasto de palavras.

20 de junho de 2004

À sesta


Foto: Carlos Fernandes

O calor de Junho debruça-se sobre os telhados, entranhando-se até nas mais acanhadas vielas. Em penumbra se emudecem as casas fechadas: tenta-se em vão conservar a frescura entre as grossas paredes. A quietude é apenas quebrada pelo zumbir dos insectos e pelo eco das horas na torre sineira. Nem o sussurro das rezas, nem o ladrar dos cães… A aldeia deixa-se mergulhar na modorra e dormita um sono breve.

No torpor da sesta -
O sol açoita os telhados
Das casas fechadas.

Só o zumbido das horas
Quebra o sossego da tarde.

19 de junho de 2004

Pregão


do ardor da carne
emerge a palavra

na ebulição do sangue
sublimada

disputando o vento
corre o horizonte

sorvendo o ar frio
na praia serena

reclina-se um pouco
sobre o areal

tomando alento
no beijo da espuma

e ao sol do crepúsculo
ateia o poema

18 de junho de 2004

o perfume da maresia
envolve o corpo
em abandono

e cintila sobre a pele
como um queixume

anunciando a madrugada
no arrepio da brisa

17 de junho de 2004



Escondido nas pétalas
de um rubro botão de rosa -
O primeiro beijo.

16 de junho de 2004

como água
beijando
os sulcos da pedra

como vento
alisando
a palidez da areia

água e vento
o meu olhar em ti

15 de junho de 2004

alentejo


calam-se as aves

adormece na planura
o bafo do estio

só a água do regato
quebra o silêncio da tarde

e desmente a sede

14 de junho de 2004

olhos acesos na bruma
silenciosas e quedas
à beira da estrada

as criaturas da noite
farejam
o hálito das máquinas

mas destas
nem rasto nem rosto

apenas a vertigem do álcool

11 de junho de 2004



alucinação -
um rebanho de papoilas
pasta em silêncio

10 de junho de 2004

A Camões



Chorai ninfas do Tejo
e do Mondego
que o fraco batel do Poeta
naufragou

quando em apagada
e vil tristeza
a pátria que ele amava
se afogou

caladas estão a lírica
e a epopeia
que um dia à gente surda
ele cantou

das lívidas mãos
tombaram já
a dura espada e a doce pena
que empunhou

chorai ninfas, chorai,
chorai bem alto,
que o fraco batel do Poeta
naufragou

9 de junho de 2004

magra silhueta
de amarelo e verde
vestida

ao longo do tortuoso
caminho da serra -
o suave aceno da giesta

8 de junho de 2004

Insónia:

um animal aziago
devora as entranhas
da noite

e enche os olhos
de névoa e sal.

6 de junho de 2004



a alvura das pétalas
ilumina o verde silêncio
da magnólia

saberá a flor que
basta uma centelha
para acender o dia?

5 de junho de 2004



amarelo vibrante
entre o verde das ervas

o bater das asas
da borboleta

talvez o último

3 de junho de 2004

Saturnal

descem pelas dunas
os ébrios ventos
o ardor do cio atiçando o olhar

nos lábios molhados
uma prece pagã
zunindo na areia à luz do luar

em louca folia
correm praia fora
fecundando a noite co'a espuma do mar

2 de junho de 2004

armadilha do tempo
- a espera -
onde o devir se consome

o futuro já foi
e o passado
não chegou a ser

29 de maio de 2004

O espelho da eternidade


(Foto de Carlos Fernandes)

À sombra de um frondoso pinheiro, imóvel sobre a colina, o busto de bronze observa a paisagem polvilhada pela brancura das casas. Na esteira desse olhar, o íntimo declive dos montes abraça um horizonte sem nuvens. E o espelho quieto das águas reflecte o azul intemporal dos céus. Como se a eternidade fosse agora.

O busto contempla
- olhar cavado no bronze -
o vale soalheiro.

Nas águas quietas do tanque
o tempo adormeceu.

28 de maio de 2004

à beira do rio -
dorme o pescador à linha
esquecido da cana

canta a brisa no salgueiro
que lhe acaricia o rosto

27 de maio de 2004

nos braços do ocaso -
numa ingenuidade rósea
desfalece a tarde

23 de maio de 2004

as mãos em abandono
celebram o oriente

o delírio da pele
ardendo nos dedos

e uma sede oblíqua
exaltando o sangue

na maciez da erva
bebo dos teus lábios
o orvalho matinal

22 de maio de 2004

o gorjeio das aves
despede-se da trovoada

enche-se a manhã de ecos

e o sol brilha já
em cada gota de chuva

enche-se o vale de reflexos

21 de maio de 2004

na arte do ar
o mistério das palavras

a doce lucidez das aves
germina em segredo

um perfume arrancando
das sombras em carne viva

assim respira o poema
sob um tecido de bruma

19 de maio de 2004

na arte do fogo
se engendra o poema

da forja em chamas
emergem as palavras

e o verbo
no peito se incendeia

a voz se consumindo
em ouro e cinza

18 de maio de 2004

abraça-se a roseira
ao tronco descarnado
da árvore morta

e veste-a com as suas folhas
e enfeita-a com as suas flores
e envolve-a no seu perfume

assim permanecerão
- nuas, mas erectas -
quando a roseira morrer também

17 de maio de 2004

induziste o grilo
com o caule do feno
a abandonar a sua toca

e ele entoa agora
numa gaiola de cana
trovas à liberdade

16 de maio de 2004

quanta poesia
pode conter o aroma
de um fruto maduro

e o beijo do sol poente
na tua pele inquieta

15 de maio de 2004

maduras como beijos

as palavras
acordam o âmago da página

e o poema diz adeus
ao terno regaço da Primavera

13 de maio de 2004

parido entre musgos e penedos
o rio alisa o limo dos cabelos
com os dedos cristalinos da torrente

num langor de sereia prateada
inflama a planície em verde orgasmo
embalado pelo suspiro dos pinhais

corre então a saudar o sol poente
e prostrado se esvai na maré vaza

11 de maio de 2004

os cachos dourados
da nespereira
invocam as tuas carícias
à luz cálida
do sol de Verão

10 de maio de 2004

o poeta é
um grão de areia
na consciência do mundo

o poema é
a consciência do mundo
num grão de areia

a poesia é
o grão de areia
a consciência e o mundo

9 de maio de 2004

a palavra «azul»
não torna o arco-íris mais perene

a palavra «amanhã»
não torna a noite menos escura

a palavra «água»
não torna a sede mais suportável

a palavra «amor»
não torna a morte menos brutal

«azul», «amanhã», «água», «amor»
não são mais do que palavras

mas as palavras são o fermento do poema

8 de maio de 2004

colho da tua boca
o travo aromático das uvas

e bebo na tua voz
o sussuro verde da videira

enquanto as minhas mãos
se embriagam
com o vinho doce do teu corpo

7 de maio de 2004

o sol atiça o branco da cal
que veste as casas
estremunhadas pela bruma

o ar cheira a erva cortada
e o eco do sino traz consigo
o desassossego das aves

5 de maio de 2004

o ventre da névoa

 o ventre da névoa
regurgita lentamente
o perfil das árvores

e desvenda sem pudor
a curva ténue dos montes

4 de maio de 2004

Bailado frenético –
no sopro da ventania
esbracejam as árvores.

Gravetos, folhas e pétalas
riscam o céu num tumulto.

30 de abril de 2004

a flor do nenúfar



a flor do nenúfar
lembra os lábios lívidos
de Ofélia
engolida pelas águas
de um amor cruel

e o som do regato
traz o suspiro da sua voz

29 de abril de 2004

verde mansão


(Foto de Carlos Fernandes)

Testemunha de uma história secular, a velha árvore estende a fronde sobre o bosque e abre os braços às gerações de aves, insectos e outros animais que nela buscam abrigo e alimento. Na sua vocação maternal, a todos tolera com a mesma brandura e generosidade.

Nos braços abertos
do carvalho secular
se aninham os bichos

como uma verde mansão
que a Primavera povoa.

28 de abril de 2004

acorda

ouves o calor
afagando as pedras?

o grilo
exalta no seu cântico
o hálito róseo da madressilva

27 de abril de 2004

da húmida placidez
do caracol
restam apenas
a hélice da concha

e um rasto brilhante

25 de abril de 2004



A tarde ensolarada convida a um passeio a pé. Os campos estão já engalanados com as grinaldas da primavera. O ar rescende como uma donzela perfumada. Sob um renque de árvores frondosas, a sombra sugere uma pequena pausa. Os olhos depressa se habituam à penumbra. E descobrem uma massa escura entre os ramos de um arbusto baixo, fincado numa barreira do caminho: um ninho! Um segredo mal guardado, que a curiosidade tenta não perturbar, nem comprometer ...mas não resiste a uma espreitadela.

três ovos azuis
aguardam o calor da ave
ausente do ninho

a brisa da tarde vela
com cuidado maternal

23 de abril de 2004

Maré rosa e branca -
No pomar de macieiras
um manto de flores.

16 de abril de 2004

sorrateira
como chegou

a névoa retira-se

fugindo
dos avanços tímidos
do sol

15 de abril de 2004

Já se vê a lua -
Não adormece o jasmim
Nem o seu perfume.

Está escutando o ensaio
Da orquestra dos insectos.

14 de abril de 2004

mudar de casa é também
reencontrar velhas memórias
no fundo do baú

- os objectos da infância
os poemas da juventude
as fotos de sempre -

(quase) ilesas
da corrosão do tempo

13 de abril de 2004

[Em cada grão de poeira]

(À Isabel)

Em cada grão de poeira
volteando feito luz,
em cada praia desnuda,
em cada gesto, na sede,
evoco a tua memória,
meu amor, e emudeço.

Na flor da espuma rasgada,
nos teus olhos, meu amor,
nos gritos-ritos das mãos,
no beijo que se amotina,
nas cinzas do amor desfeito,

oiço o teu corpo sonhar,
oiço o meu sangue fluir,
meu amor, e emudeço.

É cada sorriso cheio
que desdobras nos meus braços
mais um sinal descerrando
o meu peito feito mar

É por ti o fôlego
é por ti a luz
é por ti a força

É por ti o amor

Carlos Alberto Silva
1984

12 de abril de 2004

enches as mãos de terra


enches as mãos de terra
e dedicas-te ao milagre
da multiplicação das plantas

há em ti o mesmo enlevo
com que geraste os filhos

crianças e plantas
encontram abrigo
no teu regaço telúrico

11 de abril de 2004


era Abril e fazia frio

os corpos vergavam-se
ao rigor de um longo Inverno

tangia-se a tristeza
pelas vielas de um povo
de alma moribunda

novos e velhos
amordaçavam o desejo

e o sangue secava
enclausurado
na certeza do martírio

depois, um dia
soltou-se uma canção fraterna

o sol amanheceu sorrindo
e os rostos desabrocharam
e as espingardas floriram

era Abril
e a Primavera tinha saído à rua

10 de abril de 2004

o que ficou na casa vazia

rectângulos claros
na parede
em lugar de quadros

riscos a lápis
assinalando o crescimento
das crianças

ecos antigos
de riso e choro

e um cheiro único
que levou anos
a fabricar

nada disso coube
na camioneta das mudanças

9 de abril de 2004

No ar matinal -
O zumbido das abelhas
Sobre a madressilva.

Embebedam-se as narinas
com os odores campestres.

8 de abril de 2004

movimento de câmara

o banco de jardim
a criança sentada no banco de jardim
bailam as pupilas da criança sentada no banco de jardim
no azul limpo da tarde bailam as pupilas da criança sentada no banco de jardim
no azul limpo da tarde bailam as pupilas da criança sentada
no azul limpo da tarde bailam as pupilas
o azul limpo da tarde

7 de abril de 2004

enquanto houver
uma árvore nua
a tremer de frio

enquanto houver
uma flor mirrada
à míngua de luz

enquanto houver
um fruto amargo
no sopro do vento

enquanto houver
uma ave cega
sedenta de azul

enquanto houver
uma criança triste
com fome de infinito

a primavera é mentira

6 de abril de 2004

e veio um grande pássaro
de voo raso e mudo

e a paisagem abraçou
com as suas asas
húmidas

e o horizonte se tornou
de alabastro

5 de abril de 2004

o trilo do ralo
entre a erva farta
atroa
na lonjura do ermo
à luz branda do entardecer

qual trovador solitário
acordando ao primeiro sopro
do calor primaveril

4 de abril de 2004

à margem do tempo
no esconso do alfarrabista
adormece o velho livro
de poemas
sob a camada de pó

abriga entre as páginas
amareladas
vestígios de pétalas
e uma dedicatória de amor
em letra comovida

aguarda o calor das mãos
e o som da voz
que numa tarde de sol
voltarão de novo
a dar asas às palavras

3 de abril de 2004

vem comigo sábado à tarde
ao mercado da fruta

onde os odores
cítricos e açucarados
embebedam o ar
e o rubor das maçãs
se compara ao próprio sol

vamos adivinhar o eco dos pregões
que há muito se perderam
nas esquinas do tempo

e o teu sorriso
voltará a colorir a praça

2 de abril de 2004

sobre a corola
fechada
o sono das pétalas
abraça
o último raio de sol

e a flor adormece

1 de abril de 2004

Na beira da estrada
quatro papoilas simulam
um Verão de mentira.

(Primeiro de Abril)

31 de março de 2004

sem paleta
nem pincéis
o gesto aberto da mão
vai subjugando
o corpo virgem
da tela
ao delírio das cores

30 de março de 2004

alheios à deriva
do tempo

esquecidos da opacidade
da noite

abracemos
a ténue claridade do luar

e aguardemos
pelos auspícios do sol

29 de março de 2004

borboletas de metal
sobrevoando
flores de papel

assim as palavras
que não dizes

mas que adivinho
no teu olhar

28 de março de 2004

como flores secas
entre as páginas de um livro

pétala a pétala
se desfazem as memórias
no abismo do tempo

27 de março de 2004


como as ervas daninhas
me agarro às pedras
deste sinuoso caminho

à míngua de água fresca
enterro as raízes
no sedimento rugoso

as parcas sementes
disperso à toa
numa ilusão de infinito

mas os meus olhos
vão nas asas que não tenho
e no voo que nunca farei

26 de março de 2004

o rouxinol canta
junto à minha janela:
- vem aí a luz da aurora

e a lua dorme sozinha
indiferente
ao fervilhar das palavras

25 de março de 2004

a paciência das folhas
tece um vestido
vermelho
sobre o rendilhado
das flores

a ameixieira seminua
estende os braços
ao sol da Primavera

24 de março de 2004

sob o telhado precário
do cedro verde
a erva amassada
denuncia o leito transitório
do andarilho

que todos os dias
refresca os olhos
com o hálito da chuva
na fímbria luminosa
do horizonte

e leva nas mãos
o suspiro do vento
e carrega no peito
um desejo infatigável
de infinito

22 de março de 2004

Num rude afago -
o vento agreste despenteia
os canaviais.

21 de março de 2004

«a emergência livre da palavra*»

(no Dia Mundial da Poesia)

há quem se roje no chão em desespero
há quem erga as mãos ao céu e reze

há quem pinte quadros
há quem medite
há quem árvores plante
livros semeie

eu reservo apenas
em cada dia
um sítio para as palavras
em liberdade
e me entrego nú em suas mãos

sereno
assim enfrento
na exaltação da poesia
o desenlace incerto dos amanhãs

* Da mensagem de Koichiro Matsura, director-geral da UNESCO.

20 de março de 2004

Primavera

Enche-se de risos o bosque
Onde as ninfas festejam
O sol primaveril.

Em louca cavalgada
Sobre o dorso dos faunos
A nudez das musas
Evoca a inocência
Dos tempos antigos.

O sopro de Zéfiro
Vibra na flauta de Pã.

Incitando a arremetida
Selvagem dos sátiros
Dionísio acende
A loucura perene
No ventre das bacantes.

A brisa fecunda
As flores da Hélade
Com a memória do mito.

19 de março de 2004

mar bravo

o baque das ondas
atordoa a noite

a exaltação da espuma
salga o vento agreste

há mulheres
de pele enrugada
nas sombras da praia

guardam a memória
dos antigos náufragos
sob os xailes negros

Praia da Nazaré

18 de março de 2004

pelos olhos do poema
sou actor
e testemunha

no teatro
branco e negro
das emoções

17 de março de 2004

A Nau Catrineta nunca voltou

Ao poeta Joaquim Evónio

aprendiz de marinheiro
lanço meu repto ao mar

espero a Nau Catrineta
que um dia há-de voltar

meus olhos vogam nas ondas
mas não chego a embarcar

e sobre a areia da praia
fico sentado a sonhar

só me restam as palavras
com que teço o meu cantar

16 de março de 2004

no vão da escada
clandestino
o amor

a faina dos corpos
incendeia a penumbra

enche a casa deserta
de súplicas

ofegante
rendido
jaz

o amor
clandestino
no vão da escada

15 de março de 2004

Desejo de ave
no papagaio de papel
voando na praia

e que em vã correria
tenta seguir as gaivotas.

14 de março de 2004

Amanhece o sol
Sobre os galhos partidos
Pela tempestade

Tornam-se douradas
As flores do tojo

Os ternos salgueiros
Encostam as cabeleiras
Em longas carícias

Balançam suavemente
Os cachos dos lilases

O eco dos pássaros
Volta a encher o bosque
De alegres trinados

Árvores flores e aves
Entoam um hino à vida

13 de março de 2004

um piano é uma ave
que despiu as asas
na metamorfose do ébano

entre o marfim e o aço
ensaia o voo
sem largar o solo

12 de março de 2004

Os mártires de Guernica acordaram em Madrid

«El sueno de la razon produce monstruos»
(título de uma gravura de Francisco Goya)


Os mártires de Guernica acordaram
em Madrid

os corpos trucidados dão notícia da guerra
mesmo em tempo de paz

os carniceiros firmam as suas causas no desespero
na morte, no horror e no medo

e prestam culto ao grande bode do baile das bruxas
imolando as mesmas vítimas de sempre:

os inocentes.

Carlos Alberto Silva
11 Março 2004

11 de março de 2004

o vento arrasta o pólen

Ao rei trovador D. Dinis

Num ligeiro remoinho
o vento arrasta o pólen
das flores do verde pino.

E traz consigo a memória
do velho rei trovador:
- Ai flores do verde pino.

Quem suspira mansamente
pelos pinhais do litoral?
Será o vento ou o mar?

Ou serão ainda os ecos
duma cantiga de amigo?
- Ai flores do verde pino.

Perdida na bruma densa
do tempo sem remissão
soa a mágoa do poeta:

- Ainda ouvis minha voz?
Ainda vos lembrais de mim
ó flores do verde pino?

Mas só responde o murmúrio
do vento que arrasta o pólen
das flores do verde pino.

10 de março de 2004

mênstruo telúrico -
a flor púrpura do trevo
sangrando na erva

9 de março de 2004

aqueço a voz
na imperfeita ponte
da palavra

gaivota sem rumo
entre ilhas solitárias

8 de março de 2004

voa borboleta -
os meus olhos vão contigo
de flor em flor.

7 de março de 2004

quando bebias
a água cristalina
dos riachos

e enfeitavas as orelhas
com a alvura
da flor do sabugueiro

e guardavas as palavras
apenas para
os momentos graves

eu ouvia mais
no teu silêncio
que no canto persistente
das aves

6 de março de 2004

acima do arrazoado
do tráfego

o voo delicado
da garça

por um momento
tudo pára

tudo paira

e os olhos batem asa
no rasto oblíquo
da ave

5 de março de 2004

as gotas de chuva
sobre o lírio boquiaberto

contas de cristal
no veludo roxo
da paixão

ou lágrimas talvez

4 de março de 2004

acordam as árvores
num orgasmo vegetal
rendidas ao cio

rodopia no ar denso
a penugem dos salgueiros

2 de março de 2004

volátil é a palavra
tecida
na periferia da boca

libertando-se da tinta
entranhada
nas fibras da página

palavra dita
palavra viva

29 de fevereiro de 2004

para lá
do corrupio das nuvens
do voo dos pássaros
do fragor do mar

demora-se o estio

e com ele
o júbilo dos dias

28 de fevereiro de 2004

neva

o vento espalha
sobre a serrania
a pele branca do frio

como uma página trémula

27 de fevereiro de 2004

a jornada dos dedos
inflama o desejo
na polpa das ancas

alvoroço dos corpos
entre o fogo e o gelo

26 de fevereiro de 2004

onde a flor de papel
se entregou
às carícias do fogo

um punhado de cinzas
e o odor da ausência

24 de fevereiro de 2004

a barca da lua
navega comigo
no grande mar de breu

um casulo de luz
que se move
ao ritmo dos passos

mão cheia de nada
com destino
a parte incerta

22 de fevereiro de 2004

Carnaval barroco



A máscara branca
da lua de Veneza
brinca nos canais.

Traz entre as mãos o
coração de Pierrot.

21 de fevereiro de 2004


(Foto de Carlos Fernandes)
Depois da devastação do fogo, vem a água fustigar as encostas do monte. Sem a protecção da cobertura vegetal, consumida pelo incêndio do final de Verão, a enxurrada galga as vertentes com devoradora fúria. Arrasta consigo tudo o que apanha pela frente, rasgando até o próprio ventre da terra. Uma crença antiga afirma que os pecados dos homens acirram a ira dos deuses. A verdade é que os erros dos humanos recaem muitas vezes sobre a própria natureza e, depois desta, em si próprios…

Após o fogo -
O monte é fustigado
Pela fúria das águas.

O ímpeto da enxurrada
Rasga o ventre da terra.

20 de fevereiro de 2004

Camomilas
bordando a ponto cruz
o verde dos prados.

Entre pétalas brancas
a face breve do sol.

19 de fevereiro de 2004

na silhueta das mãos
movem-se os
pássaros da alvorada

são as palavras
desfilando
no dorso do poema

18 de fevereiro de 2004

no espelho de água
tremula a tua imagem
sob a acção da brisa

entrego o meu olhar
ao voo raso das aves

17 de fevereiro de 2004

a mão na fronte
confirma
a fadiga do corpo

na claridade parda
dos olhos
só o poema se agita

16 de fevereiro de 2004

angústia

...
agitas um punhal de lava

sonhas o golpe que rasga
a amargura cruel da carne

algo obscuro ferve
no mais íntimo do sangue
e te impede de respirar

como um animal acossado
...

15 de fevereiro de 2004

A luz da aurora
rasga o ventre da noite
ébria de poemas.

A insónia das palavras
arde nos olhos
e na boca dos poetas.

14 de fevereiro de 2004

No doce sussurro
do casal de namorados -
o júbilo das aves.

Trocam-se beijos e flores
debaixo da velha tília.

13 de fevereiro de 2004

pousas a cabeça
no macio da almofada

os olhos afrouxam

um delírio de asas
vem atiçar os sonhos

12 de fevereiro de 2004

No alto da escarpa
Ausente sob o nevoeiro -
O castelo dorme.

A penumbra matinal
Envolve a cidade opaca.

11 de fevereiro de 2004

Sorriso aberto -
estende a mão à caridade
a criança suja.

Ecoa o «cante» andaluz
na voz limpa do cigano.

10 de fevereiro de 2004

Rendas cor-de-rosa
sobre um corpo sinuoso.

A árvore nua
cede às carícias do sol
e antecipa a Primavera.

9 de fevereiro de 2004

O beijo do sol
deixa pérolas de luz
na erva orvalhada.

Resplandece
a manhã clara
na moldura
dos teus olhos.

8 de fevereiro de 2004

As palavras
habitam as pessoas
que habitam as casas.

As casas envelhecem
com as pessoas
que as habitam.

As palavras permanecem
jovens e eternas
no refúgio do poema.

7 de fevereiro de 2004

A cidade acorda
embrulhada em névoa.

Torna-se difuso o que
é concreto e concreto
o que é difuso.

6 de fevereiro de 2004

Bola fugitiva
jazendo no meio do chão -

Nos fragmentos do
vidro quebrado, espelha-se
o sol em mil reflexos.

5 de fevereiro de 2004

No pátio da escola -
O perfume das mimosas
Satura a brisa

E envolve meigamente
O beijo dos namorados.

4 de fevereiro de 2004

o riso cheio
da lua
fita a rosa do poente

namoro
ao entardecer

3 de fevereiro de 2004

abro as vestes
ao sopro morno da brisa

ao doce afago do sol

e afugento
as angústias do Inverno

2 de fevereiro de 2004

mergulho as mãos
no desalinho das letras
(negras de tinta)

na alvura do papel
o rasto do poema

31 de janeiro de 2004

eu digo, tu dizes

eu digo:
o poema é uma espécie de sussurro
mordendo a carne do verbo.
tu dizes:
as aves da tarde rasgam a mordaça,
soltando as palavras adormecidas.
eu digo:
nas carícias da árvore, o vento rende-se
à melodia que enche as ruas de cinzas.
tu dizes:
sob a página líquida da névoa,
a quimera do sol refugia-se no sono das pedras.
eu digo:
a escova dos dedos
penteia os nervos da erva.
tu dizes:
com o palpitar dos sexos,
dissimula-se a indolência das papoilas.
eu digo:
o céu abre-se, pródigo de chuva mansa
e açoita ternamente o corpo dos amantes.
tu dizes:
na água que me escorre dos cabelos
ocultam-se as lágrimas que não chorei.
eu digo:
não beijes as sombras
que se escoam com o entardecer.
tu dizes:
não supliques, não confesses,
não perdoes.
eu digo:
deixa-me mergulhar os olhos
na areia quente das tuas pernas.
tu dizes:
a tua saliva é como o gelo
endurecido na alvura das pétalas.
eu digo:
da chaga das minhas mãos
verte-se o desejo cálido das manhãs.
tu dizes:
os teus beijos falam de ilhas
perdidas no oceano das palavras.
eu digo:
o teu corpo
é o meu poema ardente.
tu dizes:
a minha carne
é a tua carne.
eu digo:
partamos, embalados pelos odores
na espuma da maré baixa
tu dizes:
partamos, até que a alvorada
nos pese nas pálpebras.
no doce pergaminho
da tua pele

traço com as unhas
o mapa inacessível
do meu desejo

30 de janeiro de 2004

Um cavalo
galopa entre as nuvens
do entardecer.

Traz a brisa nos cascos
e o fogo do sol poente.

28 de janeiro de 2004

Pombas pousadas
na pauta
aérea dos fios

treinam solfejo na
escala dos arrulhos.

27 de janeiro de 2004

Traços negros
no horizonte chuvoso.

Quedam-se os pinheiros
na caligrafia obscura
do Inverno.

26 de janeiro de 2004

Numa gota de água
a memória
do furor da tempestade.

Num só beijo
todo o fulgor da paixão.

25 de janeiro de 2004

Apanhas laranjas -
A laranjeira envolve-te
de flores brancas.

Misturam-se com o teu
os odores da árvore.

24 de janeiro de 2004

O cantar do vento
Embala a dança das árvores -
O sol adormece.

Solta-se do teu corpo nu
Um perfume de poema.

23 de janeiro de 2004

Pardo entardecer -
Uma humidade espessa
Cobre o horizonte.

Refugia-se o gato
No aconchego da casa.

21 de janeiro de 2004

esvoaçam pombas
no incêndio do poente

verso a verso
vai ardendo
a página de mais um dia

20 de janeiro de 2004

o sol da manhã
brilha nos teus olhos

flutua na brisa
o teu bafo quente

meu corpo estremece

19 de janeiro de 2004

entre as colinas
do teu corpo

com gotas de suor
escrevo
o meu nome

18 de janeiro de 2004

palavras
dispersas no éter

as estrelas
compõem
o poema celeste

17 de janeiro de 2004

No cerne da folha -
A brancura do papel
Reclama o poema.

Relembra o murmúrio doce
Do vento na árvore.

16 de janeiro de 2004

Nervuras azuis
Alastram
Sobre o papel encharcado.

Dissolve-se o poema
Na água da chuva.

15 de janeiro de 2004

Derrama-se a lua -
Pirilampos cor de mel
Nos olhos do gato.

14 de janeiro de 2004

13 de janeiro de 2004

O musgo afaga
O tronco nodoso e rude
Da velha oliveira

Velando a terra adubada
Pelo suor de gerações.

12 de janeiro de 2004

Memória de pedra
Cunhada na concha remota
Pelo afinco do tempo:

A palavra -
Matéria ancestral
do poema.

11 de janeiro de 2004

O cio dos gatos
Enche a noite de ecos.

Felina sedução
Feita de lamentos e garras
E ternas rendições.

10 de janeiro de 2004

o reflexo do sol
raspa o zebre das palavras
do riso mudo das estátuas

poema submerso
pelo musgo do tempo

9 de janeiro de 2004

soltam-se as palavras
à desfilada
na praia deserta

rumor de corcéis
sorvendo a maresia

8 de janeiro de 2004

a centelha do
poema dorme num
punho fechado

abre-se a mão
torna-se ave
Fugindo da chuva -
Vou ao ritual do café
Espantar o sono.

Amarga-se-me a boca
Por este dia cinzento.

7 de janeiro de 2004

Na aragem gelada -
O choupal à beira rio
Agita os braços.

Dedos esguios e nus
Interpelam a cidade.

6 de janeiro de 2004

Ave com raiz -
Balouça a longa couve
Numa pata só.

5 de janeiro de 2004

Abriga-se o muro
Num manto de trepadeiras
Do rigor do Inverno.

O sol rasante da tarde
Encandeia os transeuntes.

4 de janeiro de 2004



No prado de azedas -
Oscilam sinetas mudas
Sobre a erva baixa.

A brisa fria da tarde
Suspira entre a folhagem.

3 de janeiro de 2004

Luar de Janeiro -
A deusa empalidece
Na teia de névoa.

Os gatos entoam longos
Cânticos de sedução.

2 de janeiro de 2004



Bola de sabão -
Caleidoscópio de sonhos
Ao sabor da brisa.

Reflecte-se o mundo todo
Nos olhos de uma criança.

1 de janeiro de 2004

A noite ilumina-se
Com o fogo de artifício -
Presságio dos céus.

O barulho dos foguetes
Afugenta o ano velho.