29 de agosto de 2004

manifesto

entre as flores simples
do outeiro
o sussurro volátil da abelha

na verdade mais singela
o sopro primordial
da poesia

28 de agosto de 2004

abres as asas
cristalinas
irisadas de luz

revela-se o precário
ovo da aurora

26 de agosto de 2004

Bailado estival


(Foto de Carlos Fernandes)

Como numa dança lenta, ondulante e sensual, o calor torna lânguidas as criaturas e convida a um «pas-de-deux» com as ondas refrescantes. A brisa comanda o valsear das nuvens e anima o serpentear vertical das árvores. Em delírio, mar e céu se irmanam, saboreando o grande baile estival. Exalta-se o esplendor dos corpos maduros. É Verão.

no fervor da dança -
o devaneio dos corpos
celebra o estio

bulindo num vai e vem
igual às ondas na praia

25 de agosto de 2004

Fruto luminoso -
por detrás do marmeleiro
amadurece a lua

24 de agosto de 2004

transfiguram-se
as ervas ressequidas
na vaga claridade
do entardecer

corpos enegrecidos
agitando-se no contraste
da tela azul rosada

espectros balançantes
rabiscando
na página translúcida da brisa
uma última elegia

21 de agosto de 2004

desdobrado
o negro manto
da noite

o céu estrelado
é como veludo
bordado a diamantes

onde cintila
o sorriso diagonal
da lua

- também tu sorris
enquanto dormes
e sorrindo cintilas

17 de agosto de 2004

fim de estação

há um desassossego de alma
no clamor do vento
que reverbera
a grossa barreira das paredes
e faz estremecer a casa

uma fúria incontida
que desconjunta
o corpo flexível das árvores
e torna rastejantes
as ervas dos caminhos

como se
as vísceras da mãe terra
se amotinassem
num inconformado adeus
ao calor estival

16 de agosto de 2004

com a sua húmida língua
o mar refresca
a pele ardente da praia

e num sussurro
se abandona
à luz violeta do poente

13 de agosto de 2004

onde a espiral do vento
acaricia a seara

e o brilho do mármore
transfigura
o ténue rosto da lua

a noite muda de pele

8 de agosto de 2004

nas amoras dos silvados
ainda róseos de flores

nas maçãs lavadas
pela chuva estival

nos cachos de uvas
tintas de sol

no canto agudo
do melro

Agosto amadurece

5 de agosto de 2004

o poeta perguntou ao grilo
onde arranjava ele
tanta energia
tanta inspiração

e o grilo pediu-lhe
que olhasse em volta

e visse

sob o oiro do sol
a amena curva dos montes
e o alegre saltitar dos rios
e riachos

sobre o rumor das árvores
o voo travesso dos pássaros
e o suave deslizar
das nuvens

entre as flores dos prados
a azáfama das abelhas
e a indecisa dança
das borboletas

e disse

- agora repara
como é tudo tão belo
tão precioso

e eu só tenho
para os cantar
o tempo de um Verão

3 de agosto de 2004

o poeta abriu
a gaiola das palavras
e ficou a ver
a sua metamorfose
no contacto com o brilho
do sol matinal

umas tornaram-se
coloridas borboletas
e pousaram
na corola das flores

outras transformaram-se
em brancas pombas
formaram um bando
e desapareceram no céu

algumas houve
que se transformaram
em irrequietas libélulas
outras em velozes falcões
outras ainda
em sonolentos morcegos

tornadas insectos
aves
ou mamíferos voadores
todas partiram
batendo as asas

excepto uma
que pousou na mão do poeta
nela se aninhou
e adormeceu

o poeta acariciou-a
muito de mansinho
e iniciou com ela
um novo poema

2 de agosto de 2004

flutuam as palavras
como bolas de sabão
à volta da cabeça do poeta

após um momento de fulgor
rebenta uma
e outra se desfaz
e outra e outra

e logo uma dúzia delas
novas coloridas brilhantes
grandes e pequenas
surge pairando no ar

o poeta pega na rede
uma fina rede de caçar palavras
e vai no seu encalço

agarra uma aprisiona outra
liberta a primeira
junta uma segunda e logo outra
solta-as todas de novo
e de novo recomeça

depois de um tempo
nesta efémera colheita
o poeta pega nas palavras
que capturou
e põe-as a dormir
no seu bloco de notas

entre estas escolherá
as que vai usar nos seus poemas

1 de agosto de 2004

Em Darfur



negra é a tua pele

negra a tua fome

negro o medo
que te obriga a fugir

negro o choro
do filho que apertas
no desespero de um abraço

negro o teu futuro
sem futuro

mas mais negro ainda
que a mais negra das noites

é o negro coração
de quem te atormenta