2 de dezembro de 2006

em teu abraço


em teu abraço resisto
contra a usura do tempo

sou musgo, tu és muralha
em ti me apoio e sustento


1 de dezembro de 2006

entre a luz e a sombra


FOTO: Carlos Fernandes

Soltam-se braços e pernas, cabeças e torsos, entre a luz e a sombra. Inebriados pela melodia, agitam-se os corpos síncronos, entregues à dança, no fulgor da juventude. Gestos delicados e gráceis, como um sortilégio, enchem o espaço e prendem o olhar. Deixam no ar um augúrio, uma promessa, uma certeza…

volteiam os corpos
num rito de encantamento
entre a luz e a sombra

- a sedução do olhar
na sincronia da dança

os cactos de elsinore


(a Mário Cesariny)

endurecidas
pela aridez dos desertos

laceram-nos a carne
como espinhos fundentes

as palavras que sobem
à boca dos poetas

e nos mordem a alma
ferozes e ardentes

29 de novembro de 2006

velando as águas


velando as águas
estremunhadas
do rio

um rasto de névoa
- num fio –
espreguiça-se
e boceja
ao longo do vale

enquanto se penteia
ao sol matinal

18 de novembro de 2006

enleio


o céu não enjeito
quando à terra me enlaço
e nela me deito
 

13 de novembro de 2006

medronhos



semeei entre a erva
um punhado de beijos
- à espera de ser colhidos

10 de novembro de 2006

raízes



se lanço raízes é porque
em teu ventre persisto
em teu regaço me abrigo

9 de novembro de 2006

quando à luz



quando à luz
da manhã se rompe
o torpor da neblina
há um odor a erva fresca
adoçando a colina

29 de outubro de 2006

janela fechada


FOTO: Carlos Fernandes

Lá fora, o sol brinca sobre as telhas, simulando no rebordo das sombras o rendilhado da trapeira. A lacónica brisa joga às escondidas entre as chaminés e faz vibrar os mastros das antenas. No entanto, por detrás dos vidros baços, o silêncio passeia-se na casa fechada, só contrariado pelo marulhar dos insectos xilófagos. Para quando o dia em que de novo se ouvirá o palpitar dos passos no soalho e uma lufada de ar fresco desfraldará a janela?

p’ra lá da vidraça
só o silêncio habita
a casa vazia

até que um dia a janela
se abra de par em par

19 de outubro de 2006

os lírios



silenciosos e flexíveis
agitam-nos por dentro

os lírios

que afluem do interior das sombras
à berma dos campos lavrados

a pétala perfeita e suave
reflectida no espelho inquieto das águas

e a folhagem breve
mais fugaz que um dia de sol

robustos lírios sensíveis ao improviso
aplacai a nossa ânsia profunda

dispensai à carne que se esvai
um pouco da vossa essência oblíqua e vegetal

armazenai no pecíolo sedento
palavras raras, essenciais

das que nem sempre trazem certezas,
mas sim aromas laterais

que de tal ânimo
nos refundem os sentidos

1 de outubro de 2006

fila harmónica

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FOTO: Carlos Fernandes

Em cadência lenta, marcada pela percussão, avança a filarmónica, agitando a rua com o trinado dos clarinetes e das flautas. De vez em vez, insurgem-se os trompetes, rivalizando com os fliscornes, os saxofones e os trombones. Ripostam as trompas e as tubas. E logo estralejam os pratos, no seu brado metálico, a pôr ordem na melodia. Responde o assisado bombardino que é dia de devoção, mas também de folguedos e alegria.

o sopro dos músicos
enchendo a rua de sons
- é dia de festa -

e a gente acorre à janela
a ver a banda passar

3 de setembro de 2006

Mimese

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FOTO: Carlos Fernandes

O escultor traz nas mãos o frémito de uma ideia. E o barro dócil cede à pressão dos dedos, às carícias da fantasia. Da massa inerte emergem as formas de um corpo mítico, como um poema feito substância. Recria-se o mundo num gesto sereno. Celebra-se, na mimese, o acto da Criação.

cede o barro dúctil -
a força de uma ideia
vertendo das mãos

assim brotam as palavras
da matéria do poema

1 de agosto de 2006

o vagar das pernas

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FOTO: Carlos Fernandes

Pernas, para que vos quero? Para dar asas ao medo? Para sacudir o jugo dos tiranos e dos importunos? Para me conduzirdes, sem delongas, pelos trilhos deste mundo? Ou, simplesmente, para entrecruzar com outras pernas, na elementar consumação do descanso? …

repousam as pernas -
os caprichos da fortuna
numa inércia breve

enganosa indolência
de uma vida andarilha

2 de julho de 2006

a vida é agora

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FOTO: Carlos Fernandes

O tempo corre veloz, como uma bola rolando na calçada. Mas as crianças, embrenhadas no prazer do jogo, de tudo se alheiam, crendo no riso sem limites. Esquecem que, tal como eles, o trigo continua a crescer, indiferente aos remoinhos da aragem e o voo das aves se precipita em obscuros abismos. E isso, que importa? A bola rola, redonda e lesta, na alegria do aqui e agora.

que nos diz a bola
rolando pela calçada?

- a vida é agora
que importa a hora que passa
se a alegria nos demora?

21 de junho de 2006

solstício

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num riso de pétalas
a tília anuncia
o Verão que chega

4 de junho de 2006

Filho do vento

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[Foto: Carlos Fernandes]

Sou filho do vento e trago o fogo no peito. Se aqui me vês de freio na boca, ajaezado e submisso, nada te diz do tempo que passo calcorreando montes e prados, saltando valas e silvados, as crinas ao sabor da brisa. Por breves instantes, te pareço o que não sou. Mas o meu verdadeiro ser não tem peias nem amarras e o meu secreto nome é apenas conhecido por quantos amam a liberdade.

de crinas ao vento -
sob as patas do cavalo
a terra estremece

um clamor de liberdade
ecoando na planície

18 de maio de 2006

giesta

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o grilo já canta
à hora da sesta

louva o sol de Maio
que doura a giesta

6 de maio de 2006

de mão em mão

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FOTO: Carlos Fernandes

Depois do sacrifício da fé, sagrado e profano misturam-se na alegria da festa. Leiloam-se em louvor da santa os bolos da tradição e a intenção devota sacraliza o vil dinheiro. Passam de mão em mão os sabores da romaria, neste tempo de rogos e promessas. São os alimentos rituais a sustentar simbolicamente os anseios de um futuro promissor e a garantir a ordem deste mundo conturbado.

como uma prece -
os bolos da romaria
vão de mão em mão

há um cheiro de erva-doce
perfumando o arraial

3 de abril de 2006

memória de abril

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FOTO: Carlos Fernandes

Que música silenciou as armas naquele distante dia de Abril? Lembro-me que havia sorrisos ornando as faces da gente que acudiu à rua, a confirmar a urgência daquele grito de liberdade. Havia ecos de canções proibidas retinindo nas praças. E o clamor das palavras reprimidas, enfim voando entre as pombas alvoroçadas. E lembro-me que havia um aroma de cravos de todas as cores perfumando o ar.

calaram-se as armas
engalanadas de cravos
- fez-se Primavera

e um grito de liberdade
riscou o azul do céu

13 de março de 2006

esta manhã

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esta manhã
uma árvore nasceu
com as raízes embutidas
no húmus do meu peito

o sol acordou no lenho
o anseio vertical da seiva
e a copa confundiu-se com
as fibras dos meus cabelos

eram muitos os pássaros
que habitavam a árvore do meu peito
exaltando-a em arrebatados gorjeios

esta manhã
era eu a árvore do meu peito

e eu também
os pássaros que a habitavam

esta manhã
acordou em mim a primavera

26 de fevereiro de 2006

bailarico estremenho

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FOTO: Carlos Fernandes

A alegria permanece no âmago da gente, silenciosa e queda como um animal em hibernação. Mas de vez em quando é preciso esquecer mágoas e canseiras. O riso vem ao de cima e toma conta dos rostos cismáticos e frios, fazendo-os vibrar como as cordas de uma viola. Surge das entranhas e apodera-se do peito, das pernas e dos braços, activando-os numa explosão vital. E nas gargantas se ateia o canto e os corpos irrompem numa dança enérgica, trazendo do fundo dos tempos os ritmos e as melodias do bailarico dos nossos avós.

há festa na eira -
valseiam os bailadores
ao som da tocata

dando asas à alegria
contra mágoas e canseiras

20 de fevereiro de 2006

o bico do melro

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mesmo em plena chuva
o melro traz no bico
um raio de sol

18 de fevereiro de 2006

chuva

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que importam as lágrimas
impacientes de Perséfone

a líquida melancolia
escorrendo na vidraça

se a macieira agradece
a mercê das águas

e engendra em segredo
os perfumes da Primavera

17 de fevereiro de 2006

ode amazónica

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descrentes do tropical dilúvio
os pássaros tornam autónomas as asas
manuseando um robusto utensílio
de funções circulares

intensas e verdes
as fêmeas auscultam a temperatura da seiva
nesse universo habitado
onde as árvores adormecem à chuva

habituadas à fina cútis das ostras
tomam nas presas
a dieta incalculável das areias
sob a planície transparente das águas

mas é da torrente ininterrupta
onde se misturam os sedimentos dos rios
e dos lagos
que os mais jovens se alimentam

partindo então rumo à savana branca
atraídos pela exuberante panorâmica
dos incêndios

15 de fevereiro de 2006

o lado cruel das palavras

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a noite é dos seres opacos
que preferem o silêncio das trevas
à crueza da luz

eles sonham que lá no fundo
no reduto mais sombrio da alma
arqueja o lado cruel das palavras

como uma víbora mortífera
à espera do momento certo
para dar o bote

eis porque se ocultam
silenciosos e opacos
os seres da noite

quem sabe se em penitência

13 de fevereiro de 2006

deixa mirar-te

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deixa mirar-te em silêncio

enquanto aguardo
que o voo sincopado da carriça
traga um presságio
de primavera

e a ternura das tuas mãos

11 de fevereiro de 2006

epitáfio

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quando a ira primitiva
incendeia a turba

e a indignação se muda
em indignidade

com sangue se grafam
as laudas do credo

e agoniza na calçada
a pomba da Liberdade

5 de fevereiro de 2006

jardinagem

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um espinho de roseira
rasga o dorso da tarde

solta-se a terra das botas
no canteiro das horas

e há uma semente perene
germinando entre os dedos

uma flor de névoa
amornando os lábios

um alfobre de ilusões
cantando aqui e agora

- é com as rugas da face
que se aduba a fantasia

31 de janeiro de 2006

neve

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seduzida pelo beijo do frio

a montanha
de branco se desnuda

28 de janeiro de 2006

a arte de tricotar a pedra

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FOTO: Carlos Fernandes

Ensina-me a arte de tricotar a pedra e a tecer o cordame dos navios na brancura leitosa do calcário. Quero apartar da massa amorfa a saga barroca dos marinheiros de antanho. Partir de cinzel na mão em busca das plantas e dos bichos exóticos das Índias Orientais. Navegar entre as volutas dos capitéis com a clarividência do sol nascente. Lançar âncora no imaginário de um porto longínquo. E, por fim, assinar nas lajes polidas pelo tempo com as sombras do entardecer.

quero entretecer
o cordame dos navios
com o meu cinzel

e navegar à bolina
num mar de pedra calcária

1 de janeiro de 2006

O jogo do Tempo

jogodotempo.jpg
FOTO: Carlos Fernandes

Acabou a partida. Cartas na mesa, vamos a outra, que a sorte está de novo lançada.
Tudo é de novo possível, que nem sempre ganha quem mais trunfos tem. E não é preciso trazer cartas na manga ou fazer batota rasteira. Basta abrir os olhos e afinar uma estratégia franca e corajosa. E os «ases», as «biscas», os «reis», as «damas» e os «valetes» voltam a embainhar as «espadas», arrecadam os «paus», fecham-se em «copas» …e são obrigados a abrir mão dos «ouros», devolvendo-os a quem de direito.
Pode ser assim o jogo do Tempo!

No jogo do Tempo
não há batota que vingue
- nem cartas na manga.

Só ganha quem enfrentar
a «má sorte» cara-a-cara.