Da tradição poética oriental recolhi as influências, necessariamente contaminadas pelo contexto cultural que me rodeia. E assim se desfia este «diário poético», feito com as miudezas do dia a dia. [Esta página é redigida em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
30 de agosto de 2009
Pôr do sol
Uma ave errante chocou um ovo no horizonte
e o mar todo de luz se esbraseou.
O negrume da falésia traçou um mapa
de perfil incerto no céu vermelho.
Mas eis que a noite abriu caminho,
abraçou o areal e tudo sossegou.
Apenas o sussurro das ondas ali ficou.
19 de agosto de 2009
Traço de união
FOTO: Carlos Fernandes
Há momentos em que os limites físicos da casa são incapazes de conter o transbordante turbilhão da poesia. Dir-se-ia que um animal acossado, a quem falta o ar, subjugado num estreito reduto, eclode na metamorfose das sombras. Para lá da opacidade das paredes, procura alento na vastidão do horizonte, numa ânsia indubitável de desafogo. E, num salto, lança-se na lonjura das cordilheiras, a construir pontes sobre o vazio fundeado no âmago das multidões.
Ergue-se uma ponte
Entre o meu e o teu olhar
- Fugaz turbilhão
Num sorriso caloroso
Feito traço de união
Não é preciso
Não é preciso a torrente
para explicar uma ponte,
basta um bago de suor
deslizando pela fronte.
Não é preciso o luzeiro
de uma estrela cadente,
basta apenas duas casas,
com as portas frente a frente.
Não é preciso um rugido
arrancado à multidão,
basta um fio de voz
entoando uma canção.
Não é preciso juncar
a rua toda de flores,
basta o vento que traz
o som cavo dos tambores.
Não é preciso correr mundo
à procura da verdade,
basta acalentar no peito
esse sonho sem idade.
Não é preciso bandeira,
nem emblema ou sinal,
bastam duas almas simples
irmanadas num ideal.
Não é preciso que o sol brilhe
para que o dia valha a pena,
basta abrir o coração
e colher uma açucena.
1 de agosto de 2009
Contraluz
FOTO: Carlos Fernandes
Aninhadas na fundura da carne, numa quietude que nada parece perturbar, as palavras detêm-se, mudas e serenas. Nem a bravata do vento, nem o desassossego das marés, nem a inclemência das tempestades as demove da sua invisível e imóvel existência. Mas vem uma certa inclinação do sol, um peculiar revérbero do astro-rei, um contraluz engendrado do intenso conflito entre a claridade e a sombra e logo o peito se abre à debandada. E as palavras, como vento na seara, fazem soar o tropel das sílabas, rumorejando ao entardecer.
dormem as palavras
nas profundezas do peito
- em doce apatia
basta o sol em contraluz
logo acorda a poesia
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