31 de outubro de 2003

1
Saraivada forte.
A chuva enlouquece o tráfego
À hora de ponta.

2
Lágrimas geladas
Abatem-se sobre os carros.
Verte-se o pedraço.

3
Queda de granizo.
As duras mágoas do mundo
Transbordam do céu.

30 de outubro de 2003

A árvore da árvore



A árvore dourada
passou todo o Verão
injectando sol nas veias.

No fim do estio,
as cores quentes do sol
sobem à orla da árvore.

A árvore troca
a verde indumentária
por um soberbo vestido de gala:

amarelos magníficos,
laranjas opulentos,
vermelhos arrebatados.

Com o Outono,
tornam-se escarlate profundo
todas as folhas da árvore

A árvore despede-se
das cores que acumulou na seiva
e fica nua, absorta.

Indiferente à borrasca,
oculto no seio da árvore,
o vigor de um sonho primaveril.

29 de outubro de 2003

pausa na poesia

bloqueio da inspiração
pelo cansaço do dia

(a musa foi demitida)

28 de outubro de 2003

As pedras imóveis
Ignoram a chuva forte
Lavando a rua.



Falsas mariposas.
No turbilhão da borrasca,
Voam folhas mortas.



Chaga incurável
Na encosta da montanha -
Rasgão de pedreira.

27 de outubro de 2003

Descalça e só
Traz o futuro no ventre -
A aldeã pobre.



Cabeleira branca
Na montanha imponente -
Manto de neblina.

26 de outubro de 2003

Visões da Eternidade

1
Em cada instante,
Cada sopro fugaz da vida -
A Eternidade.

2
Em cada sorriso,
Em cada lágrima triste -
A Eternidade

3
Na pétala solta
Que a brisa empurra no ar -
A Eternidade.

4
Num breve abraço,
Num beijo de despedida -
A Eternidade.

5
Na chama efémera
De uma vela acesa ao vento -
A Eternidade.

25 de outubro de 2003

Chega com o Outono,
Como as aves de arribação -
O amolador.



Outra versão de O amolador

24 de outubro de 2003



Farrapo na brisa –
Borboleta atordoada
Ao sabor do vento.



Morto o jardineiro -
No jardim abandonado,
A erva amotina-se.



Acácias em flor –
Uma Primavera antípoda
Desmente o Outono.

23 de outubro de 2003

Aguaceiro breve –
Uma nuvem apressada
Sacode o cabelo.



Entre as árvores nuas,
Mantém o seu casaco verde
O austero pinheiro.



Menino travesso -
O sol joga às escondidas
Com as nuvens brancas.

22 de outubro de 2003

Aves na cidade.
Voam livres sobre as ruas,
Zombando do tráfego.



A névoa amanhece.
Afaga, no horizonte,
Um sol decadente.

21 de outubro de 2003

Um sol radioso
não suaviza o ar frio
próprio do Outono.



Os dias de Ocaso
acentuam o declínio
do corpo cansado.

20 de outubro de 2003

À ginja


Sangue ou seiva -
Que líquido enrubescido
Encheu o meu copo?

Pérola ou rubi -
No fundo do copo brilha
O fruto da ginja.

Reflexo carmim -
Corre o licor na garganta,
Aquecendo a alma.



Poeta ou saltimbanco,
O palhaço enche-nos de luz,
Qual anjo sem asas.

Inspirado numa estrofe do poema «A língua em acordo
com a língua», de José Gil e na frase de Frederico Fellini:
«Fazer rir é uma missão extraordinária, é como a santidade.»

19 de outubro de 2003

A deusa erótica



Afago sensual -
A brisa na superfície
Do lago quieto.

Pele arrepiada -
No seio da deusa erótica
Adeja a borboleta.

Perdidas as mãos -
Entre as colinas brancas
Correm ofegantes.

Sussurro do vento -
Um desejo segredado
Atiça o ouvido.

Sede de infinito
Na inquietação dos corpos -
O golpe do macho.

Galope à desfilada,
As crinas em desalinho -
O grito da fêmea.

Papoilas no prado –
O silêncio dos amantes
Repousa na erva.

Carlos A. Silva

18 de outubro de 2003

Vindima



Segredos de Outono -
Sob as folhas da parreira,
Os cachos escondidos.

Colheita festiva -
As tesouras da vindima
Ecoam no vale.

Dádiva do Verão -
Na cesta se acomodam
Delicadas pérolas.

O sangue da terra -
Escorre o sumo das uvas tintas
Depois de esmagadas.

Ígnea mutação -
Fermenta o mosto na adega.
A vinha avermelha.

Vindima tardia -
O vento arrasta consigo
As folhas das videiras.

Provo o vinho novo -
O Inverno anuncia-se
No vinhedo nu.

Carlos A. Silva

17 de outubro de 2003

Espelho da ausência -
Sobre o cabelo e na barba
Já pousou a neve.



Memórias esquecidas -
Um livro sempre aberto
Acumula pó.

16 de outubro de 2003

Primeiras chuvas



Uma cortina líquida
Esbate o horizonte –
As primeiras chuvas.

Refúgio efémero –
Pardais abrigados
No beiral em ruínas.

A valada de água
Torna-se regato –
Breve ilusão.

Choro de saudade -
As gotas de chuva
Escorrem no cipreste.

Que odor se exala
Do abraço da chuva?
A terra molhada.

Rebanho submisso -
A brisa leva consigo
As nuvens da tempestade.

Sorri o horizonte –
Um raio de sol
Torna-se arco-íris.

Carlos A. Silva

15 de outubro de 2003

Evocações do Estio



Manchas de sangue
Salpicam os prados –
O grito das papoilas.

Sopra o bafo cálido –
Um lamento verde
Atravessa o bosque.

Choro do pinheiro –
Afogam-se os insectos
No copo da resina.

A escrita do voo –
Uma ave risca o azul
E faz-se poema alado.

Estalam as pinhas –
Coro de cigarras
À hora da sesta.

Maresia –
O hálito do mar
Navega na brisa.

Explodem mar e céu –
A ave mergulha,
Um peixe irrompe.

Maré baixa –
Lânguidas ondas
Acariciam a praia.

No limiar do Éden -
Um corpo dourado
Dorme sobre a areia.

Transpiram as nuvens
Sob a canícula –
Chuva de Verão.

Carlos A. Silva

14 de outubro de 2003

Haikais na cidade



Gigante na bruma -
Debruçado no monte
O castelo vigia a urbe.

Gruas no horizonte -
Afoga-se o passado
Com cimento fresco.

Esgoto sem remissão -
O rio soluça
Pelas águas de antanho.

Amores proibidos -
De costas para o rio,
A cidade prostitui-se.

Carlos A. Silva

13 de outubro de 2003

o desespero das asas

(Parafraseando o poema de José António Gonçalves
«Aves rumando a Norte»)





o desespero das asas
grita nas entranhas das aves,
no silêncio do vento

o horizonte cansado
risca mudos pontos cardeais
num ápice de luz

as nuvens impacientes, etéreas,
rumam às vezes, tropicais
ensopadas de céu

o sol recua, prisioneiro do hálito
de novas constelações,
sem olhar o sopro do suor

bátegas maduras
avançam no sacrifício do rosto,
desenham o voo da morte

as sombras do infinito
buscam mapas sem porta
nem consciência

são as aves da chuva,
atraídas pelo nada, sem voz,
sem comando, sem sul, sem norte

Carlos Alberto Silva

12 de outubro de 2003

Haikais de Outono



Pinhal verdejante -
A sombra das giestas
Abafa sob os gigantes.

Vento nas ramagens –
As asas do arvoredo
Agitam-se sem descanso.

Folha seca ao vento -
Nas mãos fortes do Outono,
Um ténue suspiro.

Cogumelo que desponta –
Parto dorido das areias
Revelando um segredo.

Onda sobre os rochedos –
Ecos despedaçados
No desespero das pedras.

Salpicos de espuma -
Afagos na face endurecida
Do velho pescador.

Tronco apodrecido –
Sonho de caravela
Encalhado no sopé da duna.

Gaivota que passa –
Miragem feita de penas
Liquefazendo-se no horizonte.

O vento fustiga a duna –
Feitos pirilampos cegos,
Volteiam os grãos de areia.

Uma nuvem deslizando –
Cavalo alado
Afogando-se em névoa.

Trilho de pegadas na areia –
Escrita efémera
No dialecto dos passos.

Sol poente –
Breve adeus dourado
No limiar do crepúsculo.

Entardecer na praia –
Desejo de infinito
No odor da maresia.

Carlos Alberto Silva