31 de outubro de 2005

o sorriso dos meninos

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FOTO: Carlos Fernandes

Para lá do arame farpado, os rostos dos meninos a quem roubaram o sorriso, suspensos numa pergunta: o que foi que aconteceu?
Que loucura foi esta que nem o olhar límpido das crianças foi capaz de suster? Porque é que, depois de tantos anos, tanta dor, tantas lágrimas, tantas palavras sentidas, o arame farpado continua a estar ali, aqui, além, roubando o sorriso dos meninos?

já não há sorrisos
nos rostos por detrás
do arame farpado

apenas um olhar
apenas uma pergunta

22 de outubro de 2005

aberta a crisálida

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aberta a crisálida
matinal
a palavra declina o voo

o corpo translúcido
firmado
na solidez da página

que do esforço das asas
sobeja tão só
o lampejo de um clarão

mas basta um sussurro e
[na combustão do poema]
inicia-se a metamorfose
da ave primordial

15 de outubro de 2005

que nos diz a flor do cardo

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«a palavra // ergue-se / mas não com destino de estátua / mas de árvore»
Xavier Zarco


que nos diz a flor do cardo
do destino das palavras

cujas raízes fertilizam
a voz doída do vento

árvores de pedra
dilacerando o poema

talvez fósseis
talvez sementes

13 de outubro de 2005

a dança dos pássaros

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a dança dos
pássaros
no céu de chumbo
tem um travo de
despedida
que a chuva não
apaga

11 de outubro de 2005

é quando

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é quando os estames
assomam
por entre a turfa

e trazem à luz
o vigor da seiva

é quando a maresia
espreita
o declínio da tarde

e simula o voo
opalino das garças

é quando esse ser
antigo
esboça um rito mortal

e o nevoeiro se ensopa
de vozes férteis

é quando as palavras
(sempre as palavras)
se recusam

9 de outubro de 2005

o vento murmura

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o vento murmura
entre o arvoredo
versos de saudade

às folhas que voam
no céu das andorinhas

8 de outubro de 2005

a romãzeira

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São cor de rubi as lágrimas da romãzeira, rendida ao canto do rouxinol.

5 de outubro de 2005

da impossível palavra

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[The Wave - William-Adolphe Bouguereau]

da impossível palavra
arrojada pela maré

do poema cavalgando
o voo raso do vento

só a alvura da espuma
pairando
por um momento

4 de outubro de 2005

ontem era assim

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[Wassily Kandinsky - Composition 4]


ontem era assim

a lavra das ondas
ao redor da ilha

o incerto abismo
que não sabe o nome

pecíolos suspensos
na muralha impura

gestos e palavras
protelados

hoje ainda

3 de outubro de 2005

as velas do moinho

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«mesmo decepada / a verdadeira palavra voa»
Xavier Zarco


as velas do moinho
lembram aquela toada
antiga e doce

do tempo em que
a terra fermentava
os ecos da enxada

e das palavras
germinavam
asas e fontes

2 de outubro de 2005

quero correr mundo

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quero correr mundo
numa melodia

beber das palavras
apenas o sol

saborear

embriagar-me
com o vento das estepes
o aroma acre das ruas
o embalo das vagas

dizer adeus
no deserto

e voltar

1 de outubro de 2005

não sei que presságio

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não sei que presságio
me atrai à bruma

ao horizonte submerso

às silhuetas difusas
comungando
a opaca luz matinal

não sei que vertigem
me arroja às pedras

ao recorte das sombras

à sentida penumbra
dos castelos
por conquistar