30 de abril de 2004

a flor do nenúfar



a flor do nenúfar
lembra os lábios lívidos
de Ofélia
engolida pelas águas
de um amor cruel

e o som do regato
traz o suspiro da sua voz

29 de abril de 2004

verde mansão


(Foto de Carlos Fernandes)

Testemunha de uma história secular, a velha árvore estende a fronde sobre o bosque e abre os braços às gerações de aves, insectos e outros animais que nela buscam abrigo e alimento. Na sua vocação maternal, a todos tolera com a mesma brandura e generosidade.

Nos braços abertos
do carvalho secular
se aninham os bichos

como uma verde mansão
que a Primavera povoa.

28 de abril de 2004

acorda

ouves o calor
afagando as pedras?

o grilo
exalta no seu cântico
o hálito róseo da madressilva

27 de abril de 2004

da húmida placidez
do caracol
restam apenas
a hélice da concha

e um rasto brilhante

25 de abril de 2004



A tarde ensolarada convida a um passeio a pé. Os campos estão já engalanados com as grinaldas da primavera. O ar rescende como uma donzela perfumada. Sob um renque de árvores frondosas, a sombra sugere uma pequena pausa. Os olhos depressa se habituam à penumbra. E descobrem uma massa escura entre os ramos de um arbusto baixo, fincado numa barreira do caminho: um ninho! Um segredo mal guardado, que a curiosidade tenta não perturbar, nem comprometer ...mas não resiste a uma espreitadela.

três ovos azuis
aguardam o calor da ave
ausente do ninho

a brisa da tarde vela
com cuidado maternal

23 de abril de 2004

Maré rosa e branca -
No pomar de macieiras
um manto de flores.

16 de abril de 2004

sorrateira
como chegou

a névoa retira-se

fugindo
dos avanços tímidos
do sol

15 de abril de 2004

Já se vê a lua -
Não adormece o jasmim
Nem o seu perfume.

Está escutando o ensaio
Da orquestra dos insectos.

14 de abril de 2004

mudar de casa é também
reencontrar velhas memórias
no fundo do baú

- os objectos da infância
os poemas da juventude
as fotos de sempre -

(quase) ilesas
da corrosão do tempo

13 de abril de 2004

[Em cada grão de poeira]

(À Isabel)

Em cada grão de poeira
volteando feito luz,
em cada praia desnuda,
em cada gesto, na sede,
evoco a tua memória,
meu amor, e emudeço.

Na flor da espuma rasgada,
nos teus olhos, meu amor,
nos gritos-ritos das mãos,
no beijo que se amotina,
nas cinzas do amor desfeito,

oiço o teu corpo sonhar,
oiço o meu sangue fluir,
meu amor, e emudeço.

É cada sorriso cheio
que desdobras nos meus braços
mais um sinal descerrando
o meu peito feito mar

É por ti o fôlego
é por ti a luz
é por ti a força

É por ti o amor

Carlos Alberto Silva
1984

12 de abril de 2004

enches as mãos de terra


enches as mãos de terra
e dedicas-te ao milagre
da multiplicação das plantas

há em ti o mesmo enlevo
com que geraste os filhos

crianças e plantas
encontram abrigo
no teu regaço telúrico

11 de abril de 2004


era Abril e fazia frio

os corpos vergavam-se
ao rigor de um longo Inverno

tangia-se a tristeza
pelas vielas de um povo
de alma moribunda

novos e velhos
amordaçavam o desejo

e o sangue secava
enclausurado
na certeza do martírio

depois, um dia
soltou-se uma canção fraterna

o sol amanheceu sorrindo
e os rostos desabrocharam
e as espingardas floriram

era Abril
e a Primavera tinha saído à rua

10 de abril de 2004

o que ficou na casa vazia

rectângulos claros
na parede
em lugar de quadros

riscos a lápis
assinalando o crescimento
das crianças

ecos antigos
de riso e choro

e um cheiro único
que levou anos
a fabricar

nada disso coube
na camioneta das mudanças

9 de abril de 2004

No ar matinal -
O zumbido das abelhas
Sobre a madressilva.

Embebedam-se as narinas
com os odores campestres.

8 de abril de 2004

movimento de câmara

o banco de jardim
a criança sentada no banco de jardim
bailam as pupilas da criança sentada no banco de jardim
no azul limpo da tarde bailam as pupilas da criança sentada no banco de jardim
no azul limpo da tarde bailam as pupilas da criança sentada
no azul limpo da tarde bailam as pupilas
o azul limpo da tarde

7 de abril de 2004

enquanto houver
uma árvore nua
a tremer de frio

enquanto houver
uma flor mirrada
à míngua de luz

enquanto houver
um fruto amargo
no sopro do vento

enquanto houver
uma ave cega
sedenta de azul

enquanto houver
uma criança triste
com fome de infinito

a primavera é mentira

6 de abril de 2004

e veio um grande pássaro
de voo raso e mudo

e a paisagem abraçou
com as suas asas
húmidas

e o horizonte se tornou
de alabastro

5 de abril de 2004

o trilo do ralo
entre a erva farta
atroa
na lonjura do ermo
à luz branda do entardecer

qual trovador solitário
acordando ao primeiro sopro
do calor primaveril

4 de abril de 2004

à margem do tempo
no esconso do alfarrabista
adormece o velho livro
de poemas
sob a camada de pó

abriga entre as páginas
amareladas
vestígios de pétalas
e uma dedicatória de amor
em letra comovida

aguarda o calor das mãos
e o som da voz
que numa tarde de sol
voltarão de novo
a dar asas às palavras

3 de abril de 2004

vem comigo sábado à tarde
ao mercado da fruta

onde os odores
cítricos e açucarados
embebedam o ar
e o rubor das maçãs
se compara ao próprio sol

vamos adivinhar o eco dos pregões
que há muito se perderam
nas esquinas do tempo

e o teu sorriso
voltará a colorir a praça

2 de abril de 2004

sobre a corola
fechada
o sono das pétalas
abraça
o último raio de sol

e a flor adormece

1 de abril de 2004

Na beira da estrada
quatro papoilas simulam
um Verão de mentira.

(Primeiro de Abril)