3 de dezembro de 2011

Na varanda do mar

 FOTO: Carlos Fernandes

Na varanda do mar, não há passado nem futuro. Visto da falésia, o horizonte é um traço indefinido, difuso pelas brumas da distância. Lá em baixo, moldando pacientemente as fragas, o labor das ondas sussurra uma ignota melodia. Serão talvez as vozes ininteligíveis dos marinheiros de antanho erguendo-se num cântico ou numa prece. Repetindo sem cessar que o que vale é a viagem, não a partida nem a chegada - que o passado e o futuro não importaram nunca, apenas o breve momento em que se recebe e se devolve o ar que respiramos.

qual pluma errante
conduzida pelo vento

- leve como o ar
que respiras neste instante

saboreia o momento

6 de novembro de 2011

À sombra das fragas

FOTO: Carlos Fernandes

À sombra das fragas, talhadas pelo tempo com a paciência das águas, aninha-se um modesto pé de urze. Agarrado pela raiz a um interstício da rocha, enfrenta teimosamente o furor dos ventos invernais e a míngua dos estios. É certo que as condições lhe não permitem grandes exuberâncias. Mas, logo que o Outono se afirma, várias fiadas de pérolas purpurinas eclodem ao longo das suas ramagens. Lembram uma antiga lenda, segundo a qual os gnomos e os duendes procurariam abrigo nestas plantas, para si e para os seus fabulosos tesouros.



Mal chega o Outono -
Resplandece entre as fragas
A uva-do-monte

Guarda nas suas raízes
O efémero tesouro da vida.

16 de outubro de 2011

verde maré

Foto e arranjo gráfico: AUGUSTO MOTA

nesta verde maré
onde vogo
entre o silêncio e o mosto
há uma trombeta de fogo
colorindo o desejo
no teu rosto 


9 de outubro de 2011

claridade

Foto e arranjo gráfico: AUGUSTO MOTA

por negra que seja a noite
por muito que sangre a alma

basta a breve claridade
de uma improvável estrela
predizendo a alvorada


25 de setembro de 2011

Baile de gala

 FOTO: Carlos Fernandes
Disse o vento, enovelando as folhas caídas pelo chão, numa espiral inquieta:
- É chegada a hora, minhas filhas. É chegada a hora do baile de gala.
E arrancando das entranhas a toada de mil instrumentos, pôs-se a soprar uma frenética sinfonia. As folhas, embaladas pelo ímpeto vigoroso do mestre, iniciaram uma coreografia arrojada. Num ritmo crescente, restolharam, rodopiaram e remoinharam, subindo e descendo nos ares, em vertiginoso torvelinho. Até que a chuva, com a sua voz de água corrente, as chamou à razão:
- Acalmai-vos minhas filhas. É hora de descansar. Já podeis voltar de novo ao seio tutelar da Terra. Aconchegai-vos no húmus, bem junto às raízes, e adormecei. A Primavera vos despertará, refeitas em seiva, e logo voltareis a adornar os braços das árvores.

Às ordens do vento -
Num bailarico demente
Giram folhas secas

Até que a chuva as acalme
E adormeçam sobre a terra.

Carlos Alberto Silva
23 Setembro 2011
(primeiro dia de Outono)

28 de agosto de 2011

Saudades do mar

FOTO: Carlos Fernandes


- Ai, que saudades do mar… - lamentava-se uma gaivota transviada pela tempestade, pousada sobre uma fraga de remota serrania. – Que saudades dessa imensa seara de água batida pelo vento, ondeando para cá e para lá, desse embalo permanente quando pouso na sua superfície e me deixo levar, desse enorme espelho azul e ouro à hora do poente… E agora aqui estou eu, perdida entre penedos e mato baixo e não sei como voltar.
Um melro-das-rochas, que ouvira o desabafo da gaivota, exclamou:
- Gostava de conhecer o mar. Levas-me contigo a vê-lo?
- Levava, se soubesse o caminho… - disse a gaivota.
- Mas eu sei – respondeu o melro, apontando para o horizonte –. Segundo ouvi dizer, o mar fica onde o sol se deita ao fim do dia. Ali mesmo, nesta direcção.
Partiram ambos, procurando acertar os respectivos ritmos de voo. Quando chegaram, o melro achou exagerada e fantasiosa a descrição da gaivota e decidiu volver para a serra. Esta, no entanto, pôs-se a trovar:

Imensa seara de água
Tocada p’lo vento

Que em vez de medrar pão
Me nutres com o teu peixe

– Salve, mar sem fim!

26 de julho de 2011

Equívoco estival


 FOTO: Carlos Fernandes

Corria ansiosa pela rua uma leve folha de árvore, aproveitando o ímpeto ocasional da brisa. Um pampilho, com quem ela se cruzou, questionou-a:
– Porque corres tu tão ansiosa, ó leve folha de árvore?
– Vou juntar-me à maratona do Equinócio – disse-lhe ela. – Senti em mim uma ânsia que me secou o pecíolo e me alourou o limbo e isso só pode ser o apelo do Outono, dando ordem para que me lance nesta demanda…
– Enganas-te – volveu-lhe o malmequer amarelo. – O Verão ainda agora se acendeu na forja do sol. Muito falta para que o fole de Bóreas venha dissipar as cinzas do estio e o Outono possa reinar entre nós.
Mas a ansiosa e leve folha de árvore não quis saber e continuou a sua insana correria. Até que uma alta muralha lhe impediu o curso e a folha ali se aquietou, consumindo-se num breve e ligeiro húmus.

Porque corre a folha
– empurrada pela brisa –
em busca do Outono

Se ainda no adro vai
o cortejo do estio?

3 de julho de 2011

As novas castelãs

FOTO: Carlos Fernandes

Palco de antigas glórias que o tempo mitificou, já nada mais resta do velho paço que as pedras nuas – ou pouco mais – que lhe dão ainda um ar da sua remota imponência. E, no entanto, não há viajante que por ali passe que resista a subir ao alto da colina e a trepar ao que resta das muralhas, para fruir um breve mas largo relance sobre o horizonte. Que o digam as andorinhas das rochas, entregues à mornidão das lajes lambidas pelo sol, tornando-se agora nas novas castelãs.

no velho castelo –
repousam as andorinhas
ao sol da manhã

não querem saber de glórias
nem de guerras e tratados

28 de maio de 2011

Tragicomédia



















FOTO: Carlos Fernandes

Há quem diga que a vida é um imenso palco onde acumulamos as funções de dramaturgo, encenador, actor e espectador. Sob as máscaras que, conforme as circunstâncias, vamos colocando, nem o riso é duradouro, nem a dor definitiva. Tudo depende do ânimo do momento. Num piscar de olhos, passa-se da comédia ao drama e deste à tragédia. E o contrário também é verdade, pois quantas vezes os incidentes agora considerados dramáticos, ou até trágicos, se tornam, com o tempo, assunto risível para quem os viveu.

o riso da máscara
traduz, num esgar de pedra,
a essência da vida:

- dão as mãos no mesmo palco
a tragédia e a comédia.

1 de maio de 2011

Tecelagem































FOTO: Carlos Fernandes

Entrelaçam-se as palavras no tear da língua: armada a trama dos signos, urdem-se os significados numa tessitura consistente. O padrão varia conforme a tonalidade e a consistência do fio da vida, dobado na cadência das horas e dos dias. O labor é contínuo e persistente, refinando o burel da fala, perseguindo uma intangível clarividência, um universal entendimento. Desde a alvorada ao ocaso do Homem.

de linho ou de lã
tece no tear o pano
– canta a tecelã

a sua voz elabora
o tecido das palavras

3 de abril de 2011

No alto do ninho


































FOTO: Carlos Fernandes

Tidas como sinal de prosperidade, de felicidade e de sorte, as cegonhas são vistas, em grande parte do mundo, como símbolos da maternidade e da dedicação familiar. Para além de serem tidas como mães e pais extremosos, acreditava-se, na Antiguidade, que alimentavam e protegiam os seus próprios pais na velhice, o que terá originado a «lex ciconaria» romana.
Sabe-se que guardam fidelidade ao companheiro de uma vida e refazem o lar sempre no mesmo local, embora os seus hábitos migratórios as levem a voar milhares de quilómetros, todos os anos. No aconchego do ninho, feito no mais alto dos sítios altos, o desvelo com que ambos os progenitores tratam as crias é fundamento suficiente para dar crédito a todos estes mitos.

Ouço castanholas
Qual concerto ao desafio
Retinindo pelo ar

- É um casal de cegonhas
De regresso ao lar.

27 de fevereiro de 2011

A rama da oliveira






















FOTO: Carlos Fernandes

A brisa faz tremelicar de forma intermitente as magras folhas da rama da oliveira. O varejo e a poda pouco deixaram nas finas hastes que adornam a árvore. Como se a paga pela dádiva da azeitona fosse o açoite e a amputação. Mas estes destemperados tratos não são castigo nem crueldade. Apenas os necessários procedimentos de um ciclo que inclui o esmagamento dos negros frutos para que o azeite pingue claro da prensa do lagar.
E logo que acabem as rudezas da invernia, a seiva tornará a subir pelas raízes, rejuvenescerá o corpo maltratado da árvore, fará brotar as ternas flores e engrossará os frutos que o sol há-de amadurecer. E o povo cantará de novo com alegria: ó rama, ó que linda rama, ó rama da oliveira...

Tombou a azeitona
Da rama da oliveira
- Foi ter ao lagar

Corre o azeite na bica
E o povo põe-se a cantar.

29 de janeiro de 2011

A sombra na estrada


















FOTO: Carlos Fernandes

Tal como a alva antecipa o dia, a nostalgia da distância leva o caminhante a lançar-se na aspereza dos caminhos. Leve bagagem de quem nada tem, a sua sombra movediça e indistinta é a contrapartida de um sol resplandecente. Mas, mesmo que a sede lhe afogueie a garganta e o suor lhe empape o rosto, o astro-rei é sempre o companheiro mais apetecido. Com ele, vem a promessa de um dia renovado, de uma seara perene, do cantar das cotovias…
Move-se a sombra ao ritmo dos passos, até que o recato de um penedo vigilante ou o rumor de uma árvore oscilando na brisa lhe proporcionem o provisório repouso de uma breve sesta. Depois, sombra e caminhante continuam a viagem, irmanados nessa busca sem destino…

Fiel camarada
dos passos do viajante
– a sombra na estrada

É a dádiva do sol
a acompanhar a jornada.