29 de dezembro de 2010

O rasto do Inverno



FOTO: Carlos Fernandes
 Antes que se apaguem as últimas brasas na lareira, vamos à janela observar o rasto do Inverno. Lá fora, tudo é sombrio e brumoso. O vento norte revolteia o arvoredo e a chuva gelada submerge a paisagem sob um véu fantasmagórico. O que na Primavera foi verde, se alourou no Verão e no Outono se tornou rubro é agora aquela massa informe e escura no atoleiro. O que até há poucos meses era fulgor e vida decompõe-se agora em lama e húmus. Mas não será esse o nobre mandato da invernia? Garantir que, quando se apagar enfim a lareira, podemos adormecer confiantes de que a Primavera retornará, fecunda e generosa...

o rigor do inverno
faz do campo um atoleiro

- debaixo da lama
a semente da esperança
aguarda a primavera

8 de dezembro de 2010

folhas outonais



persiste a luz do sol
nas folhas outonais -
dourando o dia chuvoso

28 de novembro de 2010

A epopeia do barro


FOTO: Carlos Fernandes

Este é o barro, a substância lendária da divina Criação. Dele terá surgido o próprio Homem, moldado pela vontade dos deuses. Certo é que a sua excepcional plasticidade fez dele a matéria universal da humana criação. Temperado pelo fogo, resiste às agruras do Tempo, por centenas, milhares de anos. Por isso, sabemos que foi suporte da escrita na Suméria, morada rústica na Índia, sol ritual entre os Incas, zigurate na mítica Babilónia, mural em alto-relevo na desaparecida Assíria, estátua vigilante na antiga China, vaso decorado na Grécia clássica. Acarinhado por mãos habilidosas, será tudo o que a imaginação nele quiser afeiçoar, do mais humilde objecto utilitário ao mais alto expoente do génio artístico. Este é o barro.

O barro entre as mãos -
É como um corpo que cede
À voz do desejo

E se entrega por inteiro
À carícia de um beijo

31 de outubro de 2010

Além do chinelo

FOTO: Carlos Fernandes

Reza o ditame popular que «não vá o sapateiro além do chinelo», como quem diz que devemos equacionar sempre as nossas aptidões e capacidades e ajuizar até onde podemos ir na nossa ousadia. É um alerta para o risco que corremos quando nos atrevemos em determinadas proezas ou nos abalançamos em empresas para as quais não estamos habilitados. Mas, por outro lado, se não corrermos alguns riscos, nunca nos ultrapassaremos a nós próprios, nem sairemos, como também o povo diz, «da cepa torta». Não esqueçamos que foi em tremendo risco, sem saber nada do caminho, que os audazes marinheiros de antanho, alguns deles remendões, chegaram às Índias [e aos Brasis]…

O esto do sol
Acalenta nos chinelos
Uma leve carícia

Para uns pés magoados
Pelas vielas da vida

3 de outubro de 2010

Por detrás das cortinas


















FOTO: Carlos Fernandes

Por detrás das cortinas, esconde-se um emaranhado de cordas e roldanas, telas, engradados, estrados, ripas e sarrafos. O pó uniformizou formas, cores e texturas, mimetizando uma sorte de fantasmagoria lunar. Tudo ali é imobilidade e silêncio, apenas quebrados pelo murmúrio vago dos insectos e pela ocasional deambulação dos roedores.
Longe vai o eco dos discursos, das «falas», das «deixas» e das «buchas». Longe vão as melodias das árias, das baladas e outras cantorias. Longe vão os gestos calculados, ensaiados vezes sem conta e, vezes sem conta, repetidos nos mesmos trilhos repisados. Longe vão as tragédias, os dramas, as cenas de romance e ciúme, as fábulas, as rábulas e as comédias. Longe vão o riso e as palmas… Até que as cortinas se abram de novo.

no palco vazio -
só o pó e o silêncio
são protagonistas

até que a voz dos artistas
encha o teatro de gente

29 de agosto de 2010

O abraço do feijoeiro

















FOTO: Carlos Fernandes

Poderia ser flauta, rememorando o agudo sussurro do vento que lhe penteou as folhas; poderia ser roca de fiar, pente de tear, bengala, cesto, chapéu, chincalho, reco-reco, engenho de pesca, boiz, gaiola, casa de bonecas… Poderia dar corpo ao papagaio de papel e subir nos céus como as aves que lhe arremedaram de cima. Mas preferiu ser esteio, tornar-se cúmplice de uma fertilidade que nunca teve. Embora amputada das raízes, aninhou de novo o pé na terra e esperou pelo ímpeto fecundo da natureza. Deixou-se abraçar amorosamente pelo feijoeiro, deu-lhe suporte e altura. Reverdejou, floriu, frutificou... Reinventou a sua vegetal vocação.

amparo da horta -
volta de novo à terra
mesmo sem raiz

renasce a caninha seca
no abraço do feijoeiro

1 de agosto de 2010

um cão no telhado






















FOTO: Carlos Fernandes

Passamos uma vida inteira condicionados por um conjunto de crenças, normas e pre[con]ceitos que nos foram impostos desde o nascimento. Dizem-nos ser essa uma condição indispensável para viver em sociedade...
Reprimidos na nossa espontaneidade, recalcados nos nossos desejos mais profundos, domesticados como o gado de trabalho, deixamos vergar-nos ao jugo do “sucesso” a todo o custo…
Até que um dia, acabado o tempo que nos é dado, tudo se esvai, feito poeira nos devaneios do vento. E aí damos conta que talvez nos tenhamos esquecido da primordial razão da existência: a felicidade.

um cão no telhado -
fitando o horizonte
ao sol da manhã

sabe que o devir se oculta
na lonjura da paisagem

4 de julho de 2010

Entre o céu e a terra


FOTO: Carlos Fernandes

Memórias do magma fúsil arrojado do ventre da terra no preâmbulo da Criação, consequência dos entrechoques telúricos na deriva dos continentes, moldadas pelas águas e pelo vento ao longo de milhões e milhões de anos, erguem-se em direcção ao empíreo como gigantes mudos em busca de redenção. Revestidas de fragas e penedias, sulcadas por íngremes penhascos, adornadas por matos, bosques e prados, coroadas, por vezes, pelas neves eternas onde o sol reverbera, marcam a paisagem com o seu majestoso relevo. No entanto, é na penumbra dos vales que se enraízam as montanhas.

Quis ver o futuro -
Desenlacei o olhar
No alto do monte

Mas apenas vi o mar
Brilhando no horizonte

30 de maio de 2010

Navegar é preciso

















FOTO: Carlos Fernandes
Há algures, perdido nas brumas do tempo, um cais de onde partiu a barca das nossas ilusões.
E lá fomos, compelidos pela necessidade da partida, levando connosco um bornal transbordante de convicções. Sem mapa, nem bússola, apenas com os olhos postos nas estrelas, seguimos em busca de um horizonte indefinido. Que rumo levou a viagem, ao sabor das marés e do humor do vento? Em que se tornou o destino apetecido? Uma ilha luxuriante ou um deserto? Um oásis ou uma miragem?

vamos de viagem
sem saber o rumo certo
- entre o choro e o riso

se é preciso navegar
viver também é preciso

22 de maio de 2010

Pirilampo

















Vem um pirilampo
e pousa na minha mão
- feito jóia viva.

2 de maio de 2010

Teatro de sombras
















FOTO: Carlos Fernandes

É aquela hora em que a luz declina por detrás das espessas cortinas do anoitecer e a penumbra difusa do fim de tarde ganha um matiz quase espectral. A hora em que os seres e os objectos se despedem, por momentos, da sua física substância e, meras silhuetas, tomam lugar num antigo teatro de sombras onde tudo é impreciso e vago. Embalados pelo leve alvoroço da brisa, trazem à cena a mais trágica das histórias…

Já caiu a tarde –
Breve teatro de sombras
Onde a luz fenece

À míngua de claridade
A voz da musa emudece

4 de abril de 2010

As águas da emoção






















FOTO: Carlos Fernandes

Afluem abruptamente, qual tempestade de Inverno que chega sem avisar. Tudo arrasam à sua passagem, deixando o corpo alagado, submerso em mágoa. Gorgolejam no peito até ao limite da dor. Depois escoam-se, em vagas, como a enxurrada de um rio tumultuoso. Só então, despojado pela torrente, se queda o corpo, no torpor da apatia.
E não obstante, no vazio da resignação, arde uma saudade que nunca se apaga.

Até quando podem
as duras mágoas do Inverno
ensombrar o dia?

Que secreta Primavera
florirá neste vazio?

28 de fevereiro de 2010

às flores da figueira


FOTO: Carlos Fernandes
Admiro a genuína timidez da figueira, que esconde as próprias flores no interior da fruta. De tal sorte que... passa por as não ter. E se as borboletas a desdenham, é na persistência das mais pequenas vespas que a árvore cumpre o seu desígnio.
Ah! Mas quando o sicónio se transmuta em figo e, sob o calor do sol, se amadura, não há ave que a não exalte no cântico cheio do estio.

chegaram as aves
ao banquete da figueira
em grande aranzel

trazem na voz afinada
o ameno sabor do mel

1 de fevereiro de 2010

O despertar das asas


Foto: Carlos Fernandes

«Bom dia, nuvens». Acabei agora mesmo de abrir os olhos, para lá da fina casca do ovo onde fui engendrada. Encarei, num relance, toda a imensidão do azul celeste e divaguei um pouco na deriva dos cirros, dos cúmulos e dos nimbos. «Esperem por mim», disse.
Estranhei, no entanto, que a videira não se tenha ainda animado com o viço da Primavera. Porque estou com fome, com muita fome... Uma fome insana que me compele a devorar o vegetal domicílio que me sustém… A mascar pacientemente cada folha, deixando apenas a nervura que lhe dá forma… Dia e noite, sem parar. Até que o meu corpo, então rotundo, se adormente por um tempo num casulo de seda brilhante e aí se transforme…
Um dia, o bafo tépido da brisa voltará a despertar-me. E então direi, de novo: «Bom dia, nuvens. Acabou a espera. Agora tenho asas!»

ao nascer do sol -
acorda a tosca lagarta
e põe-se a comer

embalada pelo sonho
das asas que há-de ter