31 de agosto de 2013

No rasto do pincel


FOTO: Carlos Fernandes

No rasto do pincel, tomam forma ruas serpenteantes, casas alinhadas, planícies verdejantes, prados floridos, montes nevados, falésias abruptas, ondas encrespadas e outros fragmentos pictóricos da realidade. Ora mais figurativos, ora mais abstractos, filtrados pela emoção do pintor, são os breves registos de um tempo que se não repete.
Rebrilhando ao sol da tarde, ficam então expostos ao olhar dos passantes, tentando despertar o interesse de um eventual comprador. E a troco de algumas notas, mais do que o seu labor, o artista cede um pouco das suas próprias memórias.

Manchas coloridas
Sob a poeira do tempo
- Memórias felizes.

Resplandece a luz do sol
Na tela do pensamento.

1 de agosto de 2013

Fábula




FOTO: Carlos Fernandes
Por detrás do enorme portão gradeado de uma casa senhorial, um feroz cãozarrão tomava-se de razões perante um minúsculo ratinho:
- Mas quem és tu, insignificante criatura, para te atreveres a pisar a minha sombra? Saberás, por acaso, com quem estás a lidar? Olha para o meu porte, para a imponência dos meus músculos, para os meus possantes colmilhos, sinais inequívocos da minha força, da minha bravura e da minha nobreza. Fica sabendo que sou macho premiado nos mais concorridos certames caninos, desejado e farejado por tudo quanto é cadela de raça…
Sem perder a compostura, embora sentindo o coraçãozito agitado como folha em dia de vendaval, o ratinho ia recuando disfarçadamente em direcção ao portão. Vendo que o atroz canídeo cerrava os olhos, embriagado pelos arroubos do auto-elogio, logo se escapuliu por entre o gradeamento. E, já do outro lado, fez ouvir a sua vozinha:
- De que te servem agora a tua nobreza, a tua bravura e a tua força, prisioneiro que és dessas grades, ó cão? Posso ser pequeno e insignificante, indigno até de pisar a tua sombra, mas ao menos sou livre! Poderás tu dizer o mesmo?
O cãozarrão baixou as orelhas e meteu o rabo entre as pernas. O ratinho lá foi à sua vida.