27 de novembro de 2004

da vida selvagem

na época do acasalamento
os garfos limícolas reúnem-se em bandos
e ensaiam elaborados cânticos

numa dança frenética e cega
exaltam as virtudes do sal marinho
e procedem então à desova:

um único ovo de metal dourado
que se recolhe no horizonte
quando a noite cai

25 de novembro de 2004

ao lume das palavras

na faina artesanal
da escrita

aqueço as mãos
adormeço a angústia

24 de novembro de 2004

fábula vegetal

para o povo da floresta
não há cemitérios
nem culto dos mortos

quando alguém se fina
o seu corpo é devolvido à terra
e sobre ele é plantada
uma nova árvore
que recebe o nome do defunto

para o povo da floresta
não existe morte
mas uma mudança de estado

na sua metafísica
os homens são as árvores
e as árvores são os homens

e a si mesmo se chamam
freixo tília plátano faia

23 de novembro de 2004

numa alameda
de azáleas rubras

velhas solitárias
tricotam palavras

da franja da tarde
desfiam memórias

e incitam os xailes
aos anseios do voo

os olhos perdidos
na vastidão do azul

21 de novembro de 2004

quando cair
a última folha

e o frio vier farejar
o seu corpo nu

a árvore adormecerá

indiferente
ao açoite da chuva
e ao ganido do vento


no coração da árvore
- bem lá no fundo -
abriga-se a primavera

19 de novembro de 2004


(Reflexo de ti - Maria José [Zé alentejana] / 1000imagens)

o rosto no espelho

devolve em traço lento
o resultado
da escrita do tempo

17 de novembro de 2004

janelas em fogo -
o reflexo do poente
sobre o casario

14 de novembro de 2004


(Diabo marinho - José Fagundes / 1000 imagens)

ó medusa de vidro
com escamas de alabastro

sustem teus candelabros
sobre o rio das trevas
que eu quero atravessar

com serapilheira
tábuas pregos e chapa
construí o meu batel

e lá vou agitando
às cegas
estas asas empalhadas

procurando no reverso
da sombra
a face oculta do desespero

11 de novembro de 2004

castanhas.gif

abrem-se em sorrisos
os ouriços

tombam maduras
sobre o tapete de folhas
as castanhas

são as mãos do castanheiro
estendidas a quem passa

em oferenda

9 de novembro de 2004

Renascer para um sorriso.jpg
(Renascer para um sorriso - José Fagundes / 1000imagens)

do delicado sabor
das flores
entendem as abelhas
que gravitam
no jardim do teu olhar

8 de novembro de 2004


(Intimidades - José Fagundes / 1000imagens)

conta-me uma história

deixa-me encostar
a cabeça no teu regaço
e ouvir brotar em ti as palavras
como a água cristalina
das nascentes


conta-me uma história

e eu ignorarei
todas as calamidades
que hoje aconteceram
que hoje te aconteceram
que hoje me aconteceram


conta-me uma história

e eu partirei
nesse mesmo instante
em busca do maravilhoso cristal
que cura todos os males
e satisfaz todos os desejos


conta-me uma história

e eu adormecerei
embalado pela tua voz
esquecendo que amanhã
será talvez outro dia terrível

6 de novembro de 2004

mandala

mandala.gif

ergueu a mão
traçou um círculo no ar
e uma ave sem nome
pousou no seu olhar

e disse:

pensar não é ser

o pensamento não é mais
que a sombra das coisas
à luz do luar

enquanto as trevas vêm e vão
a vida é como a água
que escorre por entre os dedos
e se some no chão

mesmo sem asas
é preciso viver

é preciso voar

4 de novembro de 2004

Por entre o vazio da noite - Jose Fagundes.jpg
(Por entre o vazio da noite - José Fagundes / 1000 imagens)

pela manhã a névoa
é uma casa vazia

viceja sobre as pedras
um pássaro de gelo

exala a ribeira
o odor da véspera

e um animal trémulo
impacienta-se
à espera do sol

3 de novembro de 2004

o dedo de Galileu

.
.

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ar o céu.
dos ven
eráveis i
nquisidor
es, nem pó.

Mais exactamente no Museo di Storia della Scienza em Florença

2 de novembro de 2004

desdactilografia

elogio_da_escrita - A_Matias.jpg
(Elogio da Escrita - António Matias / 1000 imagens)

alinham-se imóveis
as letras as palavras
as frases e os parágrafos
contra a branca parede
do papel

há um curto silêncio

subitamente
os dedos martelam
furiosamente as teclas

e as teclas correspondem
enchendo o ar quieto
de estampidos secos
e o papel de negras marcas

letras palavras
frases e parágrafos
desfalecem sob
a violência do impacto

e caem moribundos
no fundo da página

1 de novembro de 2004

Intimidades - Antonio Melo.jpg
[Intimidades] - António Melo / 1000 imagens

sobre a cama desfeita
a tua silhueta nua

a claridade da lua
tingindo a face da noite

adormece
o rebanho das palavras
entre as pregas do lençol

na doce memória
de um beijo
- o desejo