26 de setembro de 2004

o calor é um aparo
que lavra
o pomo da tarde

o gado rumina
o espinho da sede
no amargor dos cardos

à sombra da urze
emudece o sangue

sobre a pele nua
se desenlaçam
as pétalas azuis do desejo

24 de setembro de 2004

o ócio das aves
fecunda o azul de signos
breves inexactos

22 de setembro de 2004

o Outono
incendeia a vinha

entregues os cachos
ao rito sacrificial
das adegas

amadurece a rubra ninfa
no segredo dos tonéis

21 de setembro de 2004

padrão de me descobrir
trago na cabeça um barco

moldado na areia húmida
por umas mãos pequeninas

a vela de espuma branca
o cordame de algas finas

a bandeira hasteada
é uma pena perdida

só não sei que rumo leva
se chega ou vai de partida

19 de setembro de 2004

ter como filosofia
a indolência
de um peixe flexível

o zelo das varinas
no gingar das ancas

a minúcia do gato
que verifica
músculos e tendões

menos natural seria
o regresso doloroso
ao abismo dos livros

peixe varina e gato
vagueando
sob a página da língua

16 de setembro de 2004

......................parábola
........................pára a
......................... bola
........................disse o
...............senhor é preciso
...........que vos deixeis seduzir
...pela doce cintilação hipnótica da
palavra contingente para que possais
..permanecer agrestes e indiferentes
....e nada vos consinta distinção dos
....outros bichos da criação excepto
.......talvez na estúpida crueza da
..........vossa ferocidade e assim
..............vos mantenhais pelos
..............séculos dos séculos
.................sangue que sois
.......................e medula
.........................e osso
...........................diss
..............................e
..............................e
.............no ar girou como um pião

15 de setembro de 2004

um sopro
nada mais que um sopro

esse teu sorriso
de menina

dobando
o novelo da neblina

- e a rua
toda se ilumina

12 de setembro de 2004

a eloquência do verão
tomba com as folhas mortas
na pele versátil da tarde

símbolo fecundo
ou equívoco voluntário
da árvore

num esgar de comédia
o artifício das estações
enche de rugas a cidade

11 de setembro de 2004

(ao Carlos Fernandes)

reclinou-se o sol
nas pedras do velho muro

tecendo com
os frágeis fios da aranha
uma teia de luz

9 de setembro de 2004

as moscas

(contra todas as violências)


heréticas e impuras
como os metálicos insectos
cujo silvo escalda os ares
e retalha as carnes

esfregam as patas
alisam as asas
zumbem em surdina

fazem da morte seu alimento
as moscas

8 de setembro de 2004

oração perplexa

escuro fóssil
de carnívora qualidade

medusa errónea de sangue quente
afagando o marsupial abdómen
do tempo

cavalo em chamas
os cascos devorando o trópico
da aurora boreal

pulmão servil
esporo ancestral
ave translúcida
raiz atónita

hemisférica ossatura
imune ao sexo

ora pro nobis

6 de setembro de 2004

erguemos a nossa casa

(à Isabel)

erguemos a nossa casa
no dorso agreste da falésia
cravadas as raízes
no duro músculo da pedra
e os olhos das janelas
atentos ao brilho do horizonte

erguemos a nossa casa
no ventre fecundo da planície
cravadas as raízes
na plástica carne da argila
e os olhos das janelas
atentos ao mover da seara

erguemos a nossa casa
nas entranhas húmidas da floresta
cravadas as raízes
entre as tenras veias das árvores
e os olhos das janelas
atentos à comoção da folhagem

erguemos a nossa casa
no peito rude da cidade
cravadas as raízes
na estéril rigidez do betão
e os olhos das janelas
atentos ao frenesim do tráfego

e nem a audácia das ondas
nem o uivo dos ventos
nem a bofetada da chuva
nem a fúria dos homens
abalaram a sua frágil argamassa
amassada com o teu e o meu suor

2 de setembro de 2004

tresmalhados pelo cio
os corpos dos amantes

buscando por si próprios

um no outro se confundem
um no outro se constroem

1 de setembro de 2004

(a Mark Knopfler)

ao afago brando
o ventre estremece

num gemido terno
da guitarra exangue

se esvai no éter
sua seiva quente

e aí desfalece