Da tradição poética oriental recolhi as influências, necessariamente contaminadas pelo contexto cultural que me rodeia. E assim se desfia este «diário poético», feito com as miudezas do dia a dia. [Esta página é redigida em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
3 de dezembro de 2007
degrau a degrau
FOTO: Carlos Fernandes
Umas vezes alegres e confiantes, cheios de vigor e convicção, outras resignados sob o peso das mágoas. Assim vamos nós trepando a escada, quase sempre sem saber onde nos levam os degraus. Há até quem tropece, esteja prestes a cair, para logo recuperar o equilíbrio e retomar a marcha… ora mais ligeira, ora mais serena. O jugo do tempo vai vergar-nos o corpo, queiramos ou não. Mas só de nós depende a intensidade do fogo cá dentro, até que a chama se apague e a escada se acabe.
degrau a degrau
se faz a espiral da vida
- ignorando o rumo
bebendo a seiva do sonho
ardendo num fogo sem fumo
16 de novembro de 2007
a tarde definha
http://olhares.aeiou.pt/calbsilva
a tarde definha
à luz esmaecida do Outono
os imperativos da estação
continuam a desnudar a árvore
que folha a folha
se despede do sol enfraquecido
em amarelecida vénia
mas logo uma revoada de pardais
repovoa os ramos de asas
assombrando a praça num tumulto ruidoso
a chuva
que havia de acordar os íntimos odores da terra
é ainda uma promessa por cumprir
3 de novembro de 2007
o cavaleiro do vento
Foto de Carlos Fernandes
Incontestado rei dos telhados, cavalga a brisa mais débil e faz espumar no freio o vendaval mais bravio. Mesmo que o declínio do tempo lhe tenha já manchado a alva veste, continua firme no seu posto até que a última ferrugem lhe desvaneça o ânimo. Da linhagem dos cavalinhos de pau, percorre milhas e milhas sem sair do lugar, trazendo e levando num raio de sol as novas da aurora e do ocaso.
corre cavalinho
ao sabor da ventania
sobre esse telhado
traz-me novas da aurora
leva contigo o meu fado
Incontestado rei dos telhados, cavalga a brisa mais débil e faz espumar no freio o vendaval mais bravio. Mesmo que o declínio do tempo lhe tenha já manchado a alva veste, continua firme no seu posto até que a última ferrugem lhe desvaneça o ânimo. Da linhagem dos cavalinhos de pau, percorre milhas e milhas sem sair do lugar, trazendo e levando num raio de sol as novas da aurora e do ocaso.
corre cavalinho
ao sabor da ventania
sobre esse telhado
traz-me novas da aurora
leva contigo o meu fado
29 de setembro de 2007
O odor da roseira
FOTO: Carlos Fernandes
Foi entre quatro paredes rústicas que primeiro viu a luz. O gemido da progenitora advertiu-o de imediato para a algidez do mundo. Logo, no seu primeiro choro, enunciou para o futuro o obstinado protesto dos insubmissos.
Ainda hoje a sua voz se ergue contra a friagem das más intenções (sabe que assim há-de ser até que o último suspiro lhe abandone o peito). Em memória desse tempo, basta o odor de uma roseira adoçando o ar.
É preciso mais
que o calor do sol nascente
afagando a pele:
- Quatro paredes de pedra
e o odor de uma roseira
Ainda hoje a sua voz se ergue contra a friagem das más intenções (sabe que assim há-de ser até que o último suspiro lhe abandone o peito). Em memória desse tempo, basta o odor de uma roseira adoçando o ar.
É preciso mais
que o calor do sol nascente
afagando a pele:
- Quatro paredes de pedra
e o odor de uma roseira
1 de setembro de 2007
Liberdade
FOTO: Carlos Fernandes
Há portas que nunca se abriram, outras que se fecharam para sempre a cadeado, e outras que, estando abertas, não passa por elas a mais fina aragem. Há corpos amedrontados que nunca floriram. Há olhares que nunca se acenderam no clarão de uma ideia. Há rumores de vozes tolhidas no bafio dos gabinetes. Há memórias cruéis e rancores que o tempo não apaga. Há gritos e lamentos perdidos na noite. E há uma convicção perversa e granítica no absurdo da tentação totalitária. Mas…
não há ferrolho
nem aldraba que embargue
o pensamento
nem se cala a voz da esperança
no assobio do vento
não há ferrolho
nem aldraba que embargue
o pensamento
nem se cala a voz da esperança
no assobio do vento
30 de julho de 2007
Construção
FOTO: Carlos Fernandes
O miolo das casas oculta uma arte afim da cestaria. Tal como os artesãos que dobram e entrelaçam o junco ou o vime, também os operários da construção articulam as finas estruturas de ferro e aço, num labor manual de grande destreza. As elegantes colunas de metal aguardam então que o betão dê corpo às vigas e aos pilares que suportarão o edifício. Para que a casa se erga, ganhe forma e se encha de vida.
ergue-se a casa
- corpo de ferro e betão -
como uma promessa
hino ao suor do rosto
preito do labor da mão
ergue-se a casa
- corpo de ferro e betão -
como uma promessa
hino ao suor do rosto
preito do labor da mão
1 de julho de 2007
Pau de sebo
FOTO: Carlos Fernandes
Quantas vezes os sonhos nos escorregam por entre as mãos e se fica por cumprir o objectivo desejado… Quantas vezes a exaustão e o desalento nos deixam prostrados e sem ânimo, longe daquilo que definimos como propósito de uma vida…Como um pau de sebo escorregadio, que temos de trepar a pulso, à força de braços e pernas. Mas não podemos renunciar! Porque, mais que o prémio na ponta da varola, é o próprio jogo de subir e escorregar e tornar a subir que tempera a existência.
quem não teme a vida
trepa pelo pau de sebo
à força de braços
ignorando o alarido
quem não teme a vida
trepa pelo pau de sebo
à força de braços
ignorando o alarido
dos fracos e receosos
29 de maio de 2007
A oração das açucenas
FOTO: Carlos Fernandes
Vermelhas de fogo, as flores adornando a varanda vazia, como um grito de alegria ou uma prece desesperada. Azuis, as palavras de um poema devoto colorindo a parede. E o passante, olhos ao alto, não resiste a formular para si mesmo uma oração fugaz:
- Ó açucenas, que rogais à senhora da concepção, àquela que é mãe da dor e da renúncia, livrai-nos de todo o mal. Para todo o sempre, Salve!
Queda-se o olhar
em plena contemplação
no branco da casa:
- Na varanda há açucenas
na parede uma oração.
- Ó açucenas, que rogais à senhora da concepção, àquela que é mãe da dor e da renúncia, livrai-nos de todo o mal. Para todo o sempre, Salve!
Queda-se o olhar
em plena contemplação
no branco da casa:
- Na varanda há açucenas
na parede uma oração.
30 de abril de 2007
Procissão
FOTO: Carlos Fernandes
O estoiro dos foguetes faz vibrar no ar um apelo a que novos e velhos dêem continuidade à tradição. Repetem-se os gestos ancestrais da gente circunspecta, reclamando a protecção divina. Os passos devotos, regidos pela cadência dos sinos, conduzem o andor da padroeira pelas ruas da aldeia. Sobre a cabeça das mulheres, entre arranjos garridos de flores de papel, as rimas de bolos reforçam um voto de prosperidade. Assim vai a procissão…
Repicam os sinos
espalhando a notícia -
Sai a procissão!
Pelas ruas da aldeia
o povo pede amparo.
Repicam os sinos
espalhando a notícia -
Sai a procissão!
Pelas ruas da aldeia
o povo pede amparo.
25 de abril de 2007
25 de Abril Sempre!
24 de abril de 2007
10 de abril de 2007
a linguagem secreta dos pássaros
anda, vem comigo
vamos aprender a linguagem
secreta dos pássaros
vamos trepar à árvore mais alta
e adivinhar o sabor do luar
vamos perscrutar a solidão da noite
em busca do sussurro das estrelas
vamos descobrir numa praia qualquer
o brilho acetinado da madrepérola
vamos resgatar a inocência
que a bigorna do tempo destroçou
e aceitaremos a chuva morna da Primavera
como uma dádiva perene
vamos aprender a linguagem
secreta dos pássaros
vamos trepar à árvore mais alta
e adivinhar o sabor do luar
vamos perscrutar a solidão da noite
em busca do sussurro das estrelas
vamos descobrir numa praia qualquer
o brilho acetinado da madrepérola
vamos resgatar a inocência
que a bigorna do tempo destroçou
e aceitaremos a chuva morna da Primavera
como uma dádiva perene
2 de abril de 2007
Ao rio Lis
1 de abril de 2007
Perigo de queda
O farol de S. Pedro de Muel
Sob o céu da Abadia
31 de março de 2007
bandeira hasteada
FOTO: Carlos Fernandes
No alto da sua esguia forma, a velha palmeira solitária rivaliza com os mastros vazios da modernidade. Agita mansamente as suas folhas roçagantes como uma bandeira sempre hasteada, oscilando ao sabor da brisa. Espectadora do frémito que anima as gentes que flúem a seus pés, reivindica um lugar na memória da urbe. Tantas casas que já viu erguer e derrubar para de novo levantar... e tantas vidas…
bandeira hasteada
sobre os telhados da urbe
ao sabor da brisa
- na palmeira ancestral
vive a memória das casas
8 de março de 2007
porque geme a brisa
4 de março de 2007
3 de março de 2007
O enigma do gafanhoto
FOTO: Carlos Fernandes
Que novidades trazes tu, gafanhoto saltarelo? Diz-me o que se passa por esse mundo fora, enquanto descansas num fio de erva embalado pela brisa. Fala-me da quentura dos desertos, da verde humidade da densa floresta, do sobressalto constante da savana, do eco das aves de rapina estremecendo a neve da montanha. Fala-me das grandes tempestades que rasgam os céus de espanto, das catástrofes que ensombram o coração das gentes, da demência que lança irmãos contra irmãos, das sete pragas do Egipto, das mil e uma quimeras…
Não és tu o incansável viajante que tudo viu e tudo sabe? Ou serás apenas um pobre bicho provinciano que nasceu e há-de morrer dentro dos limites do meu quintal?
descansa na brisa
baloiçando com as ervas
este gafanhoto
- que coisas sabe do mundo
para lá do meu quintal?
Que novidades trazes tu, gafanhoto saltarelo? Diz-me o que se passa por esse mundo fora, enquanto descansas num fio de erva embalado pela brisa. Fala-me da quentura dos desertos, da verde humidade da densa floresta, do sobressalto constante da savana, do eco das aves de rapina estremecendo a neve da montanha. Fala-me das grandes tempestades que rasgam os céus de espanto, das catástrofes que ensombram o coração das gentes, da demência que lança irmãos contra irmãos, das sete pragas do Egipto, das mil e uma quimeras…
Não és tu o incansável viajante que tudo viu e tudo sabe? Ou serás apenas um pobre bicho provinciano que nasceu e há-de morrer dentro dos limites do meu quintal?
descansa na brisa
baloiçando com as ervas
este gafanhoto
- que coisas sabe do mundo
para lá do meu quintal?
3 de fevereiro de 2007
O sorriso do arco-íris
FOTO: Carlos Fernandes
Nenhuma ave se aventura sob o céu de chumbo e os insectos já calaram as cegarregas - apenas o vento se faz soar entre as ervas. As nuvens ameaçam os últimos raios de sol que brincam sobre as pedras e há um odor a tempestade dominando o horizonte. Mas, ao longe, um rasto colorido começa a ganhar consistência, desafiando a borrasca…
nem voos nem trilos
desassombram a paisagem
sob o céu de chumbo
Nenhuma ave se aventura sob o céu de chumbo e os insectos já calaram as cegarregas - apenas o vento se faz soar entre as ervas. As nuvens ameaçam os últimos raios de sol que brincam sobre as pedras e há um odor a tempestade dominando o horizonte. Mas, ao longe, um rasto colorido começa a ganhar consistência, desafiando a borrasca…
nem voos nem trilos
desassombram a paisagem
sob o céu de chumbo
apenas o arco-íris
desafia a tempestade
1 de janeiro de 2007
o desígnio do gesto
FOTO: Carlos Fernandes
O vigor do aço indaga a matéria informe, desnudando o perfil da própria mão que a afeiçoa. Na alvura do calcário se dá sentido ao desígnio do gesto. Pela força da mão se transfigura a pedra, em luz e sombra, como se da sua original substância nada mais restasse que a polidez de um espelho.
molda-se a pedra
ao paciente labor
do rude cinzel
no aconchego da mão
se retrata o humano afago
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