28 de dezembro de 2004

barcos

chegam de madrugada
com suas vestes pálidas
desfraldadas ao sabor da brisa

cavalgando
o corpo sinuoso das ondas
como potros fumegantes

recolhem as asas
abertas
no limiar das águas

e adormecem extenuados
sobre as areias
os braços erguidos para o alto

25 de dezembro de 2004

à Alix de Carvalho

trajando o vestido azul e roxo
do crepúsculo
a lua sorridente
veio dar um beijo furtivo
ao sol poente

morta de ciúme
pelo que acabara de ver
a chuva cerrou o dossel das nuvens
e chorou até adormecer

devagarinho
a lua entreabriu a portada
e derramou os seus pálidos cabelos
sobre a campina prateada

24 de dezembro de 2004

Natal

Os primeiros a chegar foram os pastores, acompanhados do balido dos rebanhos, guiados pelo brilho das estrelas. A eles se seguiram outras gentes de porte humilde, a pele tisnada pelo sol e pelo calor da forja, as mãos calejadas pelas ferramentas rudes. Só depois vieram os sábios com as suas vestes solenes e as suas ofertas preciosas. Mas a todos se amaciou o coração ao ver o sorriso precoce daquele menino iluminando a noite fria. E foi Natal.

É noite do galo -
no presépio da aldeia
sorri um menino

evocando o milagre
da vida que se renova

20 de dezembro de 2004

agitam-se no teu olhar
as águas
de um mar revolto

e o vento do deserto
incendeia a tua pele

que tempestade é essa
que te amotina o sangue

nesta alvorada
de baunilha e mel?

19 de dezembro de 2004

a nostalgia dos poetas

(uma homenagem à lusofonia)

a nostalgia dos poetas
enche de ocultos sentidos
a língua que falo
a língua que falas

debatem-se os poetas
com as palavras que os habitam
escondidas debaixo da pele
como animais domésticos
à espera de um afago

e penteiam-nas meticulosamente
com o metal dos aparos
nesse delicado compromisso
entre o amargor da tinta
e a limpidez opaca do papel

folheiam
com os dedos manchados de azul
uma gramática ancestral
herdada da secreta errância dos povos
entre a dor e a alegria

e trazem na alma a compaixão
pelas difíceis coisas simples
que o sangue esconde
e a noite cala

acorrentados à sua impossível condição
nas brumosas masmorras deste país
que ao nascer da aurora se faz verde
e negro se torna ao poente de tanto esperar
todos os dias resistem os poetas
contra o medo e o olvido

e as palavras
libertas do seu quotidiano jugo
enchem o peito dorido dos poetas de desejo
de um destino para além da história

é o amor dos poetas pelas palavras
que torna possível
que as fronteiras desta pátria
se estendam entre a minha
e a tua língua

e que um dia o nosso abraço
se encontre
dos dois lados deste mar

13 de dezembro de 2004

epidemia de natal


um bando de fogueiras aladas
atravessa os céus da avenida
e faz ninho nos postes de iluminação pública

estrelas carnívoras e gigantes cristais de gelo
apoderam-se das copas das árvores
donde escorrem longos pingentes de luz

uma miríade de seres eléctricos
toma conta dos mais improváveis recantos da cidade
e reinventa a claridade na longa noite invernosa

as gentes são tomadas de amnésia
e obliteram o quotidiano sobressalto da violência

feitas erráticas mariposas
esfregam os narizes no aquário das montras
como se disso dependesse a sua sobrevivência

sorvem avidamente o ar frio da noite
e suspiram
mergulhadas numa nostálgica felicidade
envenenada pela ideia de uma infância que nunca viveram

mas a chuva continua a ser tão húmida e viscosa como sempre
e fora do halo luminoso do consumismo
a noite continua a ser tão escura como todas as noites escuras

que estranhos fenómenos provoca a epidemia do natal

11 de dezembro de 2004

à Monalisa (http://sitiodasaudade.blogspot.com/)

provei o teu sangue
agridoce
e enlouqueci

ó laranja de oiro

és uma réstia de sol
que eu colhi

10 de dezembro de 2004

verde é o trevo
que atapeta o chão
que pisas tão verde

verde a luz do bosque
ao fim do dia

verde é o desejo
que incendeia o corpo
deitado no trevo

verde o teu olhar
de maresia

8 de dezembro de 2004

Caçada

é noite de lua nova

os homens reúnem-se
entre as estantes da biblioteca
para a grande caçada
ao verso branco

procuram todas as pistas
todos os rastos
no ventre
dos livros mais antigos

é aí que o bicho
provoca mais estragos

é aí que a sua existência
é mais insidiosa
mais repulsiva
mais nefasta

os caçadores espiolham
a palidez do papel
em busca dos traços
imperceptíveis da fera

com redobrada cautela
seguem a marca
das suas pegadas

e mal vislumbram
o vulto vago do animal
assestam as armas

apontam à cabeça
e desferem sucessivos disparos
até que este se estatele
inerte no solo

depois lavam as mãos
devagar
e bebem vinho tinto
até de madrugada

7 de dezembro de 2004

testemunha do luminoso
bailado das chamas

o aplauso mudo
das cinzas na lareira

e um leve odor a fumo
temperando a alvorada

4 de dezembro de 2004

debaixo da capa
manchada
pelo afã dos dedos

na cálida pulsação
das palavras

o livro respira

e nele respira o poeta