31 de janeiro de 2004

eu digo, tu dizes

eu digo:
o poema é uma espécie de sussurro
mordendo a carne do verbo.
tu dizes:
as aves da tarde rasgam a mordaça,
soltando as palavras adormecidas.
eu digo:
nas carícias da árvore, o vento rende-se
à melodia que enche as ruas de cinzas.
tu dizes:
sob a página líquida da névoa,
a quimera do sol refugia-se no sono das pedras.
eu digo:
a escova dos dedos
penteia os nervos da erva.
tu dizes:
com o palpitar dos sexos,
dissimula-se a indolência das papoilas.
eu digo:
o céu abre-se, pródigo de chuva mansa
e açoita ternamente o corpo dos amantes.
tu dizes:
na água que me escorre dos cabelos
ocultam-se as lágrimas que não chorei.
eu digo:
não beijes as sombras
que se escoam com o entardecer.
tu dizes:
não supliques, não confesses,
não perdoes.
eu digo:
deixa-me mergulhar os olhos
na areia quente das tuas pernas.
tu dizes:
a tua saliva é como o gelo
endurecido na alvura das pétalas.
eu digo:
da chaga das minhas mãos
verte-se o desejo cálido das manhãs.
tu dizes:
os teus beijos falam de ilhas
perdidas no oceano das palavras.
eu digo:
o teu corpo
é o meu poema ardente.
tu dizes:
a minha carne
é a tua carne.
eu digo:
partamos, embalados pelos odores
na espuma da maré baixa
tu dizes:
partamos, até que a alvorada
nos pese nas pálpebras.
no doce pergaminho
da tua pele

traço com as unhas
o mapa inacessível
do meu desejo

30 de janeiro de 2004

Um cavalo
galopa entre as nuvens
do entardecer.

Traz a brisa nos cascos
e o fogo do sol poente.

28 de janeiro de 2004

Pombas pousadas
na pauta
aérea dos fios

treinam solfejo na
escala dos arrulhos.

27 de janeiro de 2004

Traços negros
no horizonte chuvoso.

Quedam-se os pinheiros
na caligrafia obscura
do Inverno.

26 de janeiro de 2004

Numa gota de água
a memória
do furor da tempestade.

Num só beijo
todo o fulgor da paixão.

25 de janeiro de 2004

Apanhas laranjas -
A laranjeira envolve-te
de flores brancas.

Misturam-se com o teu
os odores da árvore.

24 de janeiro de 2004

O cantar do vento
Embala a dança das árvores -
O sol adormece.

Solta-se do teu corpo nu
Um perfume de poema.

23 de janeiro de 2004

Pardo entardecer -
Uma humidade espessa
Cobre o horizonte.

Refugia-se o gato
No aconchego da casa.

21 de janeiro de 2004

esvoaçam pombas
no incêndio do poente

verso a verso
vai ardendo
a página de mais um dia

20 de janeiro de 2004

o sol da manhã
brilha nos teus olhos

flutua na brisa
o teu bafo quente

meu corpo estremece

19 de janeiro de 2004

entre as colinas
do teu corpo

com gotas de suor
escrevo
o meu nome

18 de janeiro de 2004

palavras
dispersas no éter

as estrelas
compõem
o poema celeste

17 de janeiro de 2004

No cerne da folha -
A brancura do papel
Reclama o poema.

Relembra o murmúrio doce
Do vento na árvore.

16 de janeiro de 2004

Nervuras azuis
Alastram
Sobre o papel encharcado.

Dissolve-se o poema
Na água da chuva.

15 de janeiro de 2004

Derrama-se a lua -
Pirilampos cor de mel
Nos olhos do gato.

14 de janeiro de 2004

13 de janeiro de 2004

O musgo afaga
O tronco nodoso e rude
Da velha oliveira

Velando a terra adubada
Pelo suor de gerações.

12 de janeiro de 2004

Memória de pedra
Cunhada na concha remota
Pelo afinco do tempo:

A palavra -
Matéria ancestral
do poema.

11 de janeiro de 2004

O cio dos gatos
Enche a noite de ecos.

Felina sedução
Feita de lamentos e garras
E ternas rendições.

10 de janeiro de 2004

o reflexo do sol
raspa o zebre das palavras
do riso mudo das estátuas

poema submerso
pelo musgo do tempo

9 de janeiro de 2004

soltam-se as palavras
à desfilada
na praia deserta

rumor de corcéis
sorvendo a maresia

8 de janeiro de 2004

a centelha do
poema dorme num
punho fechado

abre-se a mão
torna-se ave
Fugindo da chuva -
Vou ao ritual do café
Espantar o sono.

Amarga-se-me a boca
Por este dia cinzento.

7 de janeiro de 2004

Na aragem gelada -
O choupal à beira rio
Agita os braços.

Dedos esguios e nus
Interpelam a cidade.

6 de janeiro de 2004

Ave com raiz -
Balouça a longa couve
Numa pata só.

5 de janeiro de 2004

Abriga-se o muro
Num manto de trepadeiras
Do rigor do Inverno.

O sol rasante da tarde
Encandeia os transeuntes.

4 de janeiro de 2004



No prado de azedas -
Oscilam sinetas mudas
Sobre a erva baixa.

A brisa fria da tarde
Suspira entre a folhagem.

3 de janeiro de 2004

Luar de Janeiro -
A deusa empalidece
Na teia de névoa.

Os gatos entoam longos
Cânticos de sedução.

2 de janeiro de 2004



Bola de sabão -
Caleidoscópio de sonhos
Ao sabor da brisa.

Reflecte-se o mundo todo
Nos olhos de uma criança.

1 de janeiro de 2004

A noite ilumina-se
Com o fogo de artifício -
Presságio dos céus.

O barulho dos foguetes
Afugenta o ano velho.