31 de dezembro de 2003

Horizonte opaco -
Embaciado de chuva
Se despede o ano.

30 de dezembro de 2003

Pincelada verde
Sobre a trama avermelhada
Dos telhados baixos.

Uma horta clandestina
Alastra por entre as telhas.

29 de dezembro de 2003

A Marcel Marceau



Abres o corpo à
Clarividência dos gestos.
Dás voz ao silêncio.

Das tuas mãos brota um rio
Donde bebo a vida inteira.

26 de dezembro de 2003



Passadas as águas do Outono, o Inverno vem encontrar lavadas da cinza as pedras dos montes ardidos no último Verão. Entre os troncos enegrecidos, as covas deixadas pelas fumarolas e algum lixo, também ele sinal da incúria dos homens, a vida volta a manifestar-se com todo o vigor. Rebentam os carrascos, as moitas e os eucaliptos; despontam os alhos-porros e os fetos; florescem o alecrim, as dedaleiras e as margaridas campestres.
No frio do Inverno, sob um ar denso de névoa, à luz de um sol tímido, a Natureza antecipa a Primavera com um sopro de esperança renovada. É Natal.


O verde da esperança
Brotando no tronco negro
Da árvore queimada.

Desperta o vigor da seiva
Numa espiral de rebentos.

25 de dezembro de 2003

Noite de Natal -
No espelho da geada
O brilho das ‘strelas.

O som dos sinos acorda
Ecos na rua deserta.

24 de dezembro de 2003

Um pequeno anjo
Vela as palhas do presépio -
O menino dorme.

Brilham luzes coloridas
Sobre as figuras de barro.

23 de dezembro de 2003

Reflexos de prata
Acordam nas oliveiras -
Solstício de Inverno.

Pendem corações vermelhos
Do diospireiro nu.

22 de dezembro de 2003

Enroscam-se as heras
Subindo pelos troncos húmidos
Das árvores antigas.

Na penumbra da floresta
Mimosas buscam a luz.

Regato inquieto -
Saltita a água ferrosa
Nas pedras vermelhas.

Prados de urtigas tenras
Bordejam as margens baixas.

Mudas testemunhas -
As mesas de piquenique
Quedam-se vazias.

Há um silêncio opressivo
Na crua ausência das aves.

21 de dezembro de 2003

Ao entardecer -
Na superfície das águas
Um rasto de luz.

Pinceladas de laranja
Varrem o horizonte roxo.

Na praia deserta
Desfazem-se as ondas brancas -
Fogem as gaivotas.

O sol mergulha na bruma
E adormece no mar.

20 de dezembro de 2003

Gritam as buzinas
No tráfego da meia tarde -
Voo espavorido.

Rolas e pardais disputam
Migalhas em plena rua.

19 de dezembro de 2003

No bosque das faias -
Rendem-se os corpos nus
Ao cio do vento.

O sussurro das carícias
Quebra o silêncio da tarde.

18 de dezembro de 2003

No céu do Chiado
Sobre o bronze de Pessoa -
Um rumor de asas.

Com as pombas de Lisboa
Voa a alma dos poetas.

17 de dezembro de 2003



Bailam as anémonas -
Os devaneios do plâncton
Turvam a maré.

15 de dezembro de 2003

Repousa o poeta -
A torrente das palavras
Sonha na caneta.

Na brancura do papel
A véspera do poema.

14 de dezembro de 2003

Fugaz labareda -
Um papel amarrotado
Arde na lareira.

Desaparece na cinza
O esboço do poema.

13 de dezembro de 2003

Horta de haikais

Composição distinguida com o 1º Prémio de poesia nos III Jogos Florais das Cortes - Leiria.

Pérolas suspensas
Cintilam na hortaliça –
As gotas de orvalho.

Riso de menino –
Sobre os legumes túrgidos
Um raio de sol.

Promessa de amor –
O feijoeiro abraça-se
Na teia de canas.

Donde brota agora
Tão requintado perfume?
Da ervilheira em flor.

Negro trapezista –
Um besouro investiga
Entre os tomateiros.

Agitam-se as meninas
Bulindo em tom de verde –
A leira de alfaces.

Mensageiro breve -
Entre as flores do meloeiro
Pousa um moscardo.

Que cor se destaca
Sob a verde cabeleira?
A tez das cenouras.

Artista de circo –
Pela rama da nabiça
Trepa a joaninha.

Hábil bordadeira –
A aranha tece cortinas
De teia brilhante.

Verde borboleta –
Metamorfose da couve
Que nutriu a lagarta.

Horta saciada –
Coaxa o velho sapo
Acabada a rega.

Carlos A. Silva

11 de dezembro de 2003

Vermelhas de sangue -
As bagas do pilriteiro
Vergando o ramo.

No sol baixo da tarde
O milhafre solitário.

10 de dezembro de 2003

Sob a lua cheia -
O corpo do sem-abrigo
Morto pelo frio.

Folhas soltas de um jornal
Voam nas asas do vento.

9 de dezembro de 2003

Fincadas no muro -
Junto da figueira nua
A nespereira em flor.

8 de dezembro de 2003

Acordou a brisa -
A lua cheia espreita
No céu enevoado.

Correm as nuvens a sul
No jogo das escondidas.

7 de dezembro de 2003

Alheios à cidade -
Passam vultos apressados
Fugindo da chuva.

6 de dezembro de 2003

Carvalho entre prédios

Há locais por onde passamos sucessivamente sem dar por nada. Até que um dia, sem qualquer razão aparente, talvez devido à inclinação da luz, ao sussurro da brisa ou ao imprevisto do momento, o nosso olhar é estimulado por um pormenor que sempre lá estivera, mas do qual nunca havíamos dado conta.
Pode ser pequeno e insignificante como uma mancha de terra, uma flor entre pedras, uma marca num muro, ou grande e imponente como uma árvore antiga ou um prédio em ruínas. E nesse pequeno/grande pormenor confrontamo-nos não apenas com a natureza imediata das coisas, somos impelidos a atribuir-lhe um significado que até aí nos tinha estado oculto.
Foi assim que encarei aquele carvalho, circundado por prédios altos, mas seguramente muito mais antigo que qualquer das construções que o rodeiam.
É por certo uma réstia da cobertura vegetal ali existente antes da cidade para lá se ter estendido. Um vestígio do tempo em que a vida ainda não dependia tão completamente das máquinas e do betão como hoje depende.
Seguramente, um motivo de reflexão sobre o que queremos nós fazer do mundo que nos legaram os nossos avós e sobre que mundo queremos nós legar aos nossos netos…

Silhueta verde
No contraste das paredes -
Carvalho entre prédios.

Vestígio de um outro tempo
Encurralado pela urbe.

4 de dezembro de 2003

Encurvam-se os corpos
Ao frio do entardecer,
Na luz que decai.

O Inverno bate à porta
Com as garras da geada.

3 de dezembro de 2003

Duplo arco-íris

Dedicado à minha cara colega e amiga Maria Adelaide Pinho.

No céu sombrio da meia tarde, numa pausa da chuva, uma nesga de sol ilumina as nuvens baixas, fazendo eclodir o arco-íris: um arco celeste fortemente colorido, surgindo de uma massa de telhados e perdendo-se, no outro extremo, num renque de árvores.
Quase de seguida, um outro arco-íris se forma, paralelo ao primeiro, sombra aguarelada das sete cores do espectro luminoso.
Durante um breve instante, ambos disputam o protagonismo dos céus, perante o olhar maravilhado de um grupo de passantes, que parou a olhar. Depois, progressiva mas inexoravelmente, um e outro começam a atenuar-se, a desfazer-se, até desaparecer, deixando o cinzento das nuvens chuvosas oprimindo o horizonte.

Duplo arco-íris -
Todas as cores do mundo
Nas gotas da chuva.

As nuvens rendem-se à luz
Iluminando os telhados.

2 de dezembro de 2003

Luzes natalícias
Tremeluzindo ao frio -
Dezembro atavia-se.

Sente-se no ar o cheiro
Das lareiras fumegantes.

1 de dezembro de 2003

O bafo das gentes
Deixa rastos de vapor
Na noite gelada.

No chão molhado da rua
Há um reflexo de luzes.

30 de novembro de 2003

Negra sementeira -
Alinhavam-se as palavras
Na página branca.

Entre os dedos frenéticos,
A pena esvai-se em poema.

27 de novembro de 2003

Depois da chuva -
O sol solta reflexos
Nas folhas outonais.

Chilreios da passarada
Ecoam entre os carvalhos.

26 de novembro de 2003

A água da chuva
Derrama-se do beirado -
Timbre de cascata.

Uma cortina de nuvens
Amordaça o horizonte.

25 de novembro de 2003

À sombra da ponte,
Cobrindo o canavial:
Manto de geada.

Sobe, lento, o vapor
Das águas ralas do rio.

24 de novembro de 2003

Pipilar de pássaros.
No ar frio da manhã,
O sol espreguiça-se.

A brisa traz o odor
De laranjas descascadas.

23 de novembro de 2003

Aves migratórias -
Passam as nuvens no céu
Ensombrando o sol.

22 de novembro de 2003

Pinheiro ao crepúsculo -
O vermelho do horizonte
Incendeia as nuvens.

Adormece na penumbra
O vulto sereno das casas.

21 de novembro de 2003

Povoando a turfa -
Com as chuvas de Outono,
Acordam os fungos.

Tracejado a giz -
Um anel de cogumelos
Na clareira aberta.

Na cúpula rubra,
Salpicos de «chantilly» -
O sonho de Alice.

20 de novembro de 2003

Passeio no bosque –
Na luz velada da tarde,
O manto de musgo.

O melro debica as bagas
Rubras do medronheiro.

19 de novembro de 2003

Vénia matinal -
Cedem as folhas das canas
Ao peso do orvalho.

18 de novembro de 2003

9h20

No passeio público,
À procura de migalhas –
Pardal solitário.

13h00

O vento sacode
As folhas do velho choupo –
Chuva de confeitos.

18h00

Serpente de luz –
A fila de automóveis
De regresso a casa.

17 de novembro de 2003

09h00

A chuva de Outono
Vestiu os campos de verde –
Ovelhas no pasto.

14h00

Tráfego voraz –
O cadáver de um cão
Na beira da estrada.

17h00

Sombras no riacho –
Abraçados, os ulmeiros
Mergulham na água.

21h30

A noite arrefece –
Solta-se o odor da cinza
Do lume apagado.

16 de novembro de 2003

O vento agita
A roupa no estendal -
Bandeiras içadas.

Na brancura dos lençóis,
Um manifesto de paz.

15 de novembro de 2003

Laranjal no Outono -
Acorda a luz do Verão
Entre as folhas verdes.

Ignorando a chuva -
Nos braços da laranjeira
Há sóis pendurados.

Na mesma ramada -
Convivem os frutos antigos
Com as laranjas novas.

14 de novembro de 2003

Nas pedras do monte
Viceja o alecrim -
Verde eremita.

13 de novembro de 2003

Despoja-se o plátano


Despoja-se o plátano -
O tapete de folhas secas
Geme sob os pés.

12 de novembro de 2003

Fim de dia: a luz sumida do crepúsculo. A brisa mal se faz notar, é quase um suspiro. O nevoeiro estende-se lentamente, como um véu gigantesco que tudo abafa. O seu abraço húmido e pardo confere um tom irreal à paisagem. Na berma da estrada, as árvores imóveis são vultos fantasmagóricos de braços estendidos. Vigiam a chegada da noite.

Espectros calados -
As oliveiras antigas
Na névoa de Outono.

11 de novembro de 2003

Canto ao vinho novo

Canto o vinho novo
Gorgolejando das pipas
Ofegante na trasfega

Canto o suor da labuta
Misturado na dorna
Ao sangue das uvas tintas

Canto o odor da adega
Plena de ventres bojudos
De venerável madeira

Canto a memória dos cestos
Encostados à parede
Fantasiando a vindima

Canto o travo da terra
E o brilho vermelho do sol
Nos jarros de barro liso

Canto a dança dos copos
Tinindo saudações
Aos frutos da novel colheita

Canto e bebo um trago
Olhando a nudez da vinha
Aspirando o ar da tarde

10 de novembro de 2003

Ressentem-se os ossos
Na humidade do dia –
Outono do corpo.

9 de novembro de 2003

A luz do luar
Avoluma o mistério
Da árvore quieta.

A nuvem abranda
A sua marcha vagabunda -
Emudece a brisa.

O beijo da treva
No rosto lunar da deusa -
É noite na noite.

Cala-se o rumor
Da nocturna criatura -
Eclipse da lua.

8 de novembro de 2003

Tanka – Ursinho verde

Sentinela atenta
Da infância longínqua:
O ursinho verde.

Na mesa-de-cabeceira,
Uma migalha do tempo.

7 de novembro de 2003

Bruma arroxeada -
Flores tardias da urze
Na berma da estrada.

6 de novembro de 2003

Sob a acção do vento, o salgueiro que cresce encostado à ponte afaga a cabeça dos peões apressados que atravessam o rio, com os seus longos, finos e verdes ramos.

Verde agitação -
Os cabelos do salgueiro
Debruçado no rio.

Passeia o vento
Nos ramos em desalinho -
Amante inquieto.

Carícias maternas -
Na cabeça dos passantes
O afago da árvore.

5 de novembro de 2003

Numa das ruas da cidade, uma árvore largou todas as suas folhas, redondas e amarelas, que atapetam o chão do passeio como pequenos sóis muribundos...

Reflexo amarelo
do pálido sol de Outono -
A folha no chão.

4 de novembro de 2003

Flores na muralha -
Odores de Primavera
Em pleno Outono.

3 de novembro de 2003

Chuva

Seio transparente
Deslizando na vidraça -
A gota de chuva.

Lágrima de amor?
Gota de água sensual
Na janela fechada.

2 de novembro de 2003

Tanka

As musas do Lis*
Morreram assassinadas
Às portas da urbe.

Jazem no fundo do rio
Submersas pelos detritos.

*Líseas era o nome dado às ninfas inspiradoras do Lis, o rio que nasce (e morre) próximo de Leiria, transformado num esgoto imundo.

Enxurrada

Do ventre da terra
Brotam as águas do rio -
Tímido regato.

O impulso da chuva
Açoita as águas do rio -
Cresce a enxurrada.

O bramir do vento
Excita as águas do rio -
Bicho acossado.

A curva da várzea
Acanha as águas do rio -
Irrompe das margens.

O beijo da terra
Tempera as águas do rio -
Fecunda a planície.

Um desejo ardente
Fustiga as águas do rio -
O abraço do mar.

1 de novembro de 2003

Surpresa de Outono -
Após a chuva nocturna,
O dia lavado.

Depois do fogo


(Em memória do incêndio que devastou a Senhora do Monte, Cortes - Leiria, no final do Verão de 2003)

A chuva corrói
As chagas negras do fogo
Na encosta do monte.

Sob o aguaceiro,
Um longo traço a negro
Varre o horizonte.

Há cinza no chão,
Cinza no céu carregado,
Na água que corre…

No pranto da chuva,
A morte cruel das árvores.
Não mais vão florir.

Perdido no fumo,
O voo gracioso das aves.
Não mais vão cantar.

Fantasmas sem voz.
Os esqueletos calcinados
Da vegetação.

Sementeira de pedras.
Arrebatada na torrente,
A alma da terra.

31 de outubro de 2003

1
Saraivada forte.
A chuva enlouquece o tráfego
À hora de ponta.

2
Lágrimas geladas
Abatem-se sobre os carros.
Verte-se o pedraço.

3
Queda de granizo.
As duras mágoas do mundo
Transbordam do céu.

30 de outubro de 2003

A árvore da árvore



A árvore dourada
passou todo o Verão
injectando sol nas veias.

No fim do estio,
as cores quentes do sol
sobem à orla da árvore.

A árvore troca
a verde indumentária
por um soberbo vestido de gala:

amarelos magníficos,
laranjas opulentos,
vermelhos arrebatados.

Com o Outono,
tornam-se escarlate profundo
todas as folhas da árvore

A árvore despede-se
das cores que acumulou na seiva
e fica nua, absorta.

Indiferente à borrasca,
oculto no seio da árvore,
o vigor de um sonho primaveril.

29 de outubro de 2003

pausa na poesia

bloqueio da inspiração
pelo cansaço do dia

(a musa foi demitida)

28 de outubro de 2003

As pedras imóveis
Ignoram a chuva forte
Lavando a rua.



Falsas mariposas.
No turbilhão da borrasca,
Voam folhas mortas.



Chaga incurável
Na encosta da montanha -
Rasgão de pedreira.

27 de outubro de 2003

Descalça e só
Traz o futuro no ventre -
A aldeã pobre.



Cabeleira branca
Na montanha imponente -
Manto de neblina.

26 de outubro de 2003

Visões da Eternidade

1
Em cada instante,
Cada sopro fugaz da vida -
A Eternidade.

2
Em cada sorriso,
Em cada lágrima triste -
A Eternidade

3
Na pétala solta
Que a brisa empurra no ar -
A Eternidade.

4
Num breve abraço,
Num beijo de despedida -
A Eternidade.

5
Na chama efémera
De uma vela acesa ao vento -
A Eternidade.

25 de outubro de 2003

Chega com o Outono,
Como as aves de arribação -
O amolador.



Outra versão de O amolador

24 de outubro de 2003



Farrapo na brisa –
Borboleta atordoada
Ao sabor do vento.



Morto o jardineiro -
No jardim abandonado,
A erva amotina-se.



Acácias em flor –
Uma Primavera antípoda
Desmente o Outono.

23 de outubro de 2003

Aguaceiro breve –
Uma nuvem apressada
Sacode o cabelo.



Entre as árvores nuas,
Mantém o seu casaco verde
O austero pinheiro.



Menino travesso -
O sol joga às escondidas
Com as nuvens brancas.

22 de outubro de 2003

Aves na cidade.
Voam livres sobre as ruas,
Zombando do tráfego.



A névoa amanhece.
Afaga, no horizonte,
Um sol decadente.

21 de outubro de 2003

Um sol radioso
não suaviza o ar frio
próprio do Outono.



Os dias de Ocaso
acentuam o declínio
do corpo cansado.

20 de outubro de 2003

À ginja


Sangue ou seiva -
Que líquido enrubescido
Encheu o meu copo?

Pérola ou rubi -
No fundo do copo brilha
O fruto da ginja.

Reflexo carmim -
Corre o licor na garganta,
Aquecendo a alma.



Poeta ou saltimbanco,
O palhaço enche-nos de luz,
Qual anjo sem asas.

Inspirado numa estrofe do poema «A língua em acordo
com a língua», de José Gil e na frase de Frederico Fellini:
«Fazer rir é uma missão extraordinária, é como a santidade.»

19 de outubro de 2003

A deusa erótica



Afago sensual -
A brisa na superfície
Do lago quieto.

Pele arrepiada -
No seio da deusa erótica
Adeja a borboleta.

Perdidas as mãos -
Entre as colinas brancas
Correm ofegantes.

Sussurro do vento -
Um desejo segredado
Atiça o ouvido.

Sede de infinito
Na inquietação dos corpos -
O golpe do macho.

Galope à desfilada,
As crinas em desalinho -
O grito da fêmea.

Papoilas no prado –
O silêncio dos amantes
Repousa na erva.

Carlos A. Silva

18 de outubro de 2003

Vindima



Segredos de Outono -
Sob as folhas da parreira,
Os cachos escondidos.

Colheita festiva -
As tesouras da vindima
Ecoam no vale.

Dádiva do Verão -
Na cesta se acomodam
Delicadas pérolas.

O sangue da terra -
Escorre o sumo das uvas tintas
Depois de esmagadas.

Ígnea mutação -
Fermenta o mosto na adega.
A vinha avermelha.

Vindima tardia -
O vento arrasta consigo
As folhas das videiras.

Provo o vinho novo -
O Inverno anuncia-se
No vinhedo nu.

Carlos A. Silva

17 de outubro de 2003

Espelho da ausência -
Sobre o cabelo e na barba
Já pousou a neve.



Memórias esquecidas -
Um livro sempre aberto
Acumula pó.

16 de outubro de 2003

Primeiras chuvas



Uma cortina líquida
Esbate o horizonte –
As primeiras chuvas.

Refúgio efémero –
Pardais abrigados
No beiral em ruínas.

A valada de água
Torna-se regato –
Breve ilusão.

Choro de saudade -
As gotas de chuva
Escorrem no cipreste.

Que odor se exala
Do abraço da chuva?
A terra molhada.

Rebanho submisso -
A brisa leva consigo
As nuvens da tempestade.

Sorri o horizonte –
Um raio de sol
Torna-se arco-íris.

Carlos A. Silva

15 de outubro de 2003

Evocações do Estio



Manchas de sangue
Salpicam os prados –
O grito das papoilas.

Sopra o bafo cálido –
Um lamento verde
Atravessa o bosque.

Choro do pinheiro –
Afogam-se os insectos
No copo da resina.

A escrita do voo –
Uma ave risca o azul
E faz-se poema alado.

Estalam as pinhas –
Coro de cigarras
À hora da sesta.

Maresia –
O hálito do mar
Navega na brisa.

Explodem mar e céu –
A ave mergulha,
Um peixe irrompe.

Maré baixa –
Lânguidas ondas
Acariciam a praia.

No limiar do Éden -
Um corpo dourado
Dorme sobre a areia.

Transpiram as nuvens
Sob a canícula –
Chuva de Verão.

Carlos A. Silva

14 de outubro de 2003

Haikais na cidade



Gigante na bruma -
Debruçado no monte
O castelo vigia a urbe.

Gruas no horizonte -
Afoga-se o passado
Com cimento fresco.

Esgoto sem remissão -
O rio soluça
Pelas águas de antanho.

Amores proibidos -
De costas para o rio,
A cidade prostitui-se.

Carlos A. Silva

13 de outubro de 2003

o desespero das asas

(Parafraseando o poema de José António Gonçalves
«Aves rumando a Norte»)





o desespero das asas
grita nas entranhas das aves,
no silêncio do vento

o horizonte cansado
risca mudos pontos cardeais
num ápice de luz

as nuvens impacientes, etéreas,
rumam às vezes, tropicais
ensopadas de céu

o sol recua, prisioneiro do hálito
de novas constelações,
sem olhar o sopro do suor

bátegas maduras
avançam no sacrifício do rosto,
desenham o voo da morte

as sombras do infinito
buscam mapas sem porta
nem consciência

são as aves da chuva,
atraídas pelo nada, sem voz,
sem comando, sem sul, sem norte

Carlos Alberto Silva

12 de outubro de 2003

Haikais de Outono



Pinhal verdejante -
A sombra das giestas
Abafa sob os gigantes.

Vento nas ramagens –
As asas do arvoredo
Agitam-se sem descanso.

Folha seca ao vento -
Nas mãos fortes do Outono,
Um ténue suspiro.

Cogumelo que desponta –
Parto dorido das areias
Revelando um segredo.

Onda sobre os rochedos –
Ecos despedaçados
No desespero das pedras.

Salpicos de espuma -
Afagos na face endurecida
Do velho pescador.

Tronco apodrecido –
Sonho de caravela
Encalhado no sopé da duna.

Gaivota que passa –
Miragem feita de penas
Liquefazendo-se no horizonte.

O vento fustiga a duna –
Feitos pirilampos cegos,
Volteiam os grãos de areia.

Uma nuvem deslizando –
Cavalo alado
Afogando-se em névoa.

Trilho de pegadas na areia –
Escrita efémera
No dialecto dos passos.

Sol poente –
Breve adeus dourado
No limiar do crepúsculo.

Entardecer na praia –
Desejo de infinito
No odor da maresia.

Carlos Alberto Silva