26 de fevereiro de 2006

bailarico estremenho

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FOTO: Carlos Fernandes

A alegria permanece no âmago da gente, silenciosa e queda como um animal em hibernação. Mas de vez em quando é preciso esquecer mágoas e canseiras. O riso vem ao de cima e toma conta dos rostos cismáticos e frios, fazendo-os vibrar como as cordas de uma viola. Surge das entranhas e apodera-se do peito, das pernas e dos braços, activando-os numa explosão vital. E nas gargantas se ateia o canto e os corpos irrompem numa dança enérgica, trazendo do fundo dos tempos os ritmos e as melodias do bailarico dos nossos avós.

há festa na eira -
valseiam os bailadores
ao som da tocata

dando asas à alegria
contra mágoas e canseiras

20 de fevereiro de 2006

o bico do melro

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mesmo em plena chuva
o melro traz no bico
um raio de sol

18 de fevereiro de 2006

chuva

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que importam as lágrimas
impacientes de Perséfone

a líquida melancolia
escorrendo na vidraça

se a macieira agradece
a mercê das águas

e engendra em segredo
os perfumes da Primavera

17 de fevereiro de 2006

ode amazónica

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descrentes do tropical dilúvio
os pássaros tornam autónomas as asas
manuseando um robusto utensílio
de funções circulares

intensas e verdes
as fêmeas auscultam a temperatura da seiva
nesse universo habitado
onde as árvores adormecem à chuva

habituadas à fina cútis das ostras
tomam nas presas
a dieta incalculável das areias
sob a planície transparente das águas

mas é da torrente ininterrupta
onde se misturam os sedimentos dos rios
e dos lagos
que os mais jovens se alimentam

partindo então rumo à savana branca
atraídos pela exuberante panorâmica
dos incêndios

15 de fevereiro de 2006

o lado cruel das palavras

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a noite é dos seres opacos
que preferem o silêncio das trevas
à crueza da luz

eles sonham que lá no fundo
no reduto mais sombrio da alma
arqueja o lado cruel das palavras

como uma víbora mortífera
à espera do momento certo
para dar o bote

eis porque se ocultam
silenciosos e opacos
os seres da noite

quem sabe se em penitência

13 de fevereiro de 2006

deixa mirar-te

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deixa mirar-te em silêncio

enquanto aguardo
que o voo sincopado da carriça
traga um presságio
de primavera

e a ternura das tuas mãos

11 de fevereiro de 2006

epitáfio

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quando a ira primitiva
incendeia a turba

e a indignação se muda
em indignidade

com sangue se grafam
as laudas do credo

e agoniza na calçada
a pomba da Liberdade

5 de fevereiro de 2006

jardinagem

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um espinho de roseira
rasga o dorso da tarde

solta-se a terra das botas
no canteiro das horas

e há uma semente perene
germinando entre os dedos

uma flor de névoa
amornando os lábios

um alfobre de ilusões
cantando aqui e agora

- é com as rugas da face
que se aduba a fantasia