1 de dezembro de 2013

O futuro ausente

FOTO: Carlos Fernandes
Bates à porta. Pegas no batente e desferes três sonoras pancadas, que ressoam no sossego da casa. Ficas à espera e nada. Voltas a bater, desta vez com mais força. Logo que o eco das pancadas se esbate, lá dentro nada bule. Esperas um pouco mais. Não está ninguém, concluis. Preparas-te para virar costas, mas um som vago chama-te a atenção. Afinal, está alguém, pensas tu. Voltas a bater, agora gentilmente, não vá esse alguém assustar-se. Silêncio. Desistes e vais embora.
Bateste à porta do futuro. Não sabes que, neste país adiado, o futuro está ausente.

Ao bater da aldraba
Só o silêncio responde.

No velho solar
Nem o vento se demora.

Porque ali já ninguém mora.

3 de novembro de 2013

Um país de marinheiros

FOTO: Carlos Fernandes
Diz a tradição que somos um país de marinheiros; que os nossos antepassados derrotaram o terrível Adamastor e deram novos mundos ao mundo. Um poeta maior cantou tais feitos, em oitavas decassilábicas, e fez dessa epopeia o poema matricial da nação. No entanto, denuncia também os que, em solo pátrio, se deixam tomar pela cobiça e o afundam «na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza». Pelo que (vi)vemos hoje, é urgente reler Camões. E acordar para o mar…

Tal como as gaivotas -
Quando perdem terra à vista
Voltam a aportar

Somos um povo marinheiro
Que virou costas ao mar

31 de agosto de 2013

No rasto do pincel


FOTO: Carlos Fernandes

No rasto do pincel, tomam forma ruas serpenteantes, casas alinhadas, planícies verdejantes, prados floridos, montes nevados, falésias abruptas, ondas encrespadas e outros fragmentos pictóricos da realidade. Ora mais figurativos, ora mais abstractos, filtrados pela emoção do pintor, são os breves registos de um tempo que se não repete.
Rebrilhando ao sol da tarde, ficam então expostos ao olhar dos passantes, tentando despertar o interesse de um eventual comprador. E a troco de algumas notas, mais do que o seu labor, o artista cede um pouco das suas próprias memórias.

Manchas coloridas
Sob a poeira do tempo
- Memórias felizes.

Resplandece a luz do sol
Na tela do pensamento.

1 de agosto de 2013

Fábula




FOTO: Carlos Fernandes
Por detrás do enorme portão gradeado de uma casa senhorial, um feroz cãozarrão tomava-se de razões perante um minúsculo ratinho:
- Mas quem és tu, insignificante criatura, para te atreveres a pisar a minha sombra? Saberás, por acaso, com quem estás a lidar? Olha para o meu porte, para a imponência dos meus músculos, para os meus possantes colmilhos, sinais inequívocos da minha força, da minha bravura e da minha nobreza. Fica sabendo que sou macho premiado nos mais concorridos certames caninos, desejado e farejado por tudo quanto é cadela de raça…
Sem perder a compostura, embora sentindo o coraçãozito agitado como folha em dia de vendaval, o ratinho ia recuando disfarçadamente em direcção ao portão. Vendo que o atroz canídeo cerrava os olhos, embriagado pelos arroubos do auto-elogio, logo se escapuliu por entre o gradeamento. E, já do outro lado, fez ouvir a sua vozinha:
- De que te servem agora a tua nobreza, a tua bravura e a tua força, prisioneiro que és dessas grades, ó cão? Posso ser pequeno e insignificante, indigno até de pisar a tua sombra, mas ao menos sou livre! Poderás tu dizer o mesmo?
O cãozarrão baixou as orelhas e meteu o rabo entre as pernas. O ratinho lá foi à sua vida.

30 de junho de 2013

A lenta erosão do tempo

FOTO: Carlos Fernandes
Ferro e pedra, arrancados ao seio da terra, são os materiais preferidos dos construtores de cidades. Moldados pelo fogo, com eles se armam as silhuetas das vertiginosas estruturas que recortam o horizonte. Robustos e poderosos, são imunes aos ímpetos do vento e da chuva em dia de temporal e resistem firmes aos próprios abalos telúricos. Na soberba dos homens, são presumidamente eternos. Mas o tempo é um bicho paciente que tudo devora. Ferro e pedra, como a efémera carne de servos e reis, tudo tornará um dia à poeira primordial.

Irmãos da ferrugem
Que rói o duro metal
- os fungos na pedra.

Agentes e testemunhas
Da lenta erosão do tempo.

2 de junho de 2013

Num feixe



FOTO: Carlos Fernandes

Secam as canas ao sol. Atadas em feixes, parecem ganhar uma robustez e uma resistência que individualmente nunca tiveram. Serão talvez reutilizadas como suporte dos vegetais da horta, para uma cerca temporária ou para cobrir um alpendre. Sendo-o ou não, se verá que essas qualidades são apenas ilusórias. Acabada a sua vulgar conveniência, irão arder num lume breve, no final da estação.
Assim parece quererem fazer à humilde gente alguns mal disfarçados admiradores do pérfido «fascio», que tão grande tragédia trouxe à Humanidade.

Soluça o regato –
O verde canavial
Foi cortado cerce.

Já não baila a fresca brisa
De braço dado com as canas.

28 de abril de 2013

Ao tacho!



FOTO: Carlos Fernandes

Sobre a parede em ruínas, um velho tacho, a lembrar os tempos que correm. Entre o significado algo acintoso de «emprego ou ocupação que dá regalias e bom salário» e a sua acepção mais comum de «utensílio para cozinhar ao lume», o tacho estará sempre ligado ao acesso aos recursos indispensáveis à sobrevivência humana. Sabendo nós que esses recursos são limitados, nunca esta imagem foi tão pertinente como em momentos de crise - que alguns chamam «de oportunidade». É que, para que uma minoria continue a acumular escandalosamente, a maioria acabará por ficar com quase nada. E haverá muitos que terão cada vez menos para pôr no tacho para que uns poucos tenham o tacho cada vez mais cheio.

Velho tacho roto -
Brilhando ao sol matinal,
Na casa em ruínas.

Refulge por entre as ervas
A memória de uma vida.

31 de março de 2013

Vai formosa e não segura


FOTO: Carlos Fernandes

Continua enlameada a vereda por onde se passeia a Primavera, vestida simplesmente com a grinalda das primeiras flores. Ainda com demasiada frequência, as nuvens entornam uma chuva espessa e gélida, fora de tempo. E o vento, esse demente, ajuda à folia, despedaçando com fúria os tenros rebentos.
Vai formosa e não segura - como diria Luís Vaz -, face à toleima de um Inverno caprichoso, mas como não é de brigas, a donzela aguardará apenas que lhe passe o mau humor.

Tarda a Primavera –
A chuva que alaga a terra
Corre sem parar.

Traindo o Equinócio,
O Inverno teima em ficar.

3 de março de 2013

A Primavera da liberdade

FOTO: Carlos Fernandes

O Inverno vem e vai, umas vezes mais ameno, outras vezes inclemente. As árvores fazem o que podem para resistir aos seus humores. Suspendem o ciclo vegetativo e despojam-se das folhas que as vestem. Açoitadas pelo vento, não têm outro remédio se não vergar-se. E por vezes quebram…
Assim o povo, perante um governo despótico. Durante um tempo, também ele se despoja, também ele se verga, também ele quebra. Mas tal como as árvores, também ele sonha com a Primavera. E há um dia em que, de flores em punho (ou bordões, ou espingardas…), faz com que a liberdade aconteça.

2 de Março de 2013
(O dia em que o povo, mais uma vez, saiu à rua)

3 de fevereiro de 2013

Morrer de pé


FOTO: Carlos Fernandes

Embora submetido ao peso dos símbolos; embora flagelado pela agrura das intempéries; embora sujeito à deriva do tempo; embora curvado e seco; embora esquecido e só… só o golpe final lhe roubará a verticalidade das suas origens, quando era verde entre o verde, árvore entre as árvores.

Sonha com a brisa
Acariciando o bosque
- Cantando baixinho.

Foi árvore, agora é mastro.
Como elas, morre de pé.