29 de maio de 2004

O espelho da eternidade


(Foto de Carlos Fernandes)

À sombra de um frondoso pinheiro, imóvel sobre a colina, o busto de bronze observa a paisagem polvilhada pela brancura das casas. Na esteira desse olhar, o íntimo declive dos montes abraça um horizonte sem nuvens. E o espelho quieto das águas reflecte o azul intemporal dos céus. Como se a eternidade fosse agora.

O busto contempla
- olhar cavado no bronze -
o vale soalheiro.

Nas águas quietas do tanque
o tempo adormeceu.

28 de maio de 2004

à beira do rio -
dorme o pescador à linha
esquecido da cana

canta a brisa no salgueiro
que lhe acaricia o rosto

27 de maio de 2004

nos braços do ocaso -
numa ingenuidade rósea
desfalece a tarde

23 de maio de 2004

as mãos em abandono
celebram o oriente

o delírio da pele
ardendo nos dedos

e uma sede oblíqua
exaltando o sangue

na maciez da erva
bebo dos teus lábios
o orvalho matinal

22 de maio de 2004

o gorjeio das aves
despede-se da trovoada

enche-se a manhã de ecos

e o sol brilha já
em cada gota de chuva

enche-se o vale de reflexos

21 de maio de 2004

na arte do ar
o mistério das palavras

a doce lucidez das aves
germina em segredo

um perfume arrancando
das sombras em carne viva

assim respira o poema
sob um tecido de bruma

19 de maio de 2004

na arte do fogo
se engendra o poema

da forja em chamas
emergem as palavras

e o verbo
no peito se incendeia

a voz se consumindo
em ouro e cinza

18 de maio de 2004

abraça-se a roseira
ao tronco descarnado
da árvore morta

e veste-a com as suas folhas
e enfeita-a com as suas flores
e envolve-a no seu perfume

assim permanecerão
- nuas, mas erectas -
quando a roseira morrer também

17 de maio de 2004

induziste o grilo
com o caule do feno
a abandonar a sua toca

e ele entoa agora
numa gaiola de cana
trovas à liberdade

16 de maio de 2004

quanta poesia
pode conter o aroma
de um fruto maduro

e o beijo do sol poente
na tua pele inquieta

15 de maio de 2004

maduras como beijos

as palavras
acordam o âmago da página

e o poema diz adeus
ao terno regaço da Primavera

13 de maio de 2004

parido entre musgos e penedos
o rio alisa o limo dos cabelos
com os dedos cristalinos da torrente

num langor de sereia prateada
inflama a planície em verde orgasmo
embalado pelo suspiro dos pinhais

corre então a saudar o sol poente
e prostrado se esvai na maré vaza

11 de maio de 2004

os cachos dourados
da nespereira
invocam as tuas carícias
à luz cálida
do sol de Verão

10 de maio de 2004

o poeta é
um grão de areia
na consciência do mundo

o poema é
a consciência do mundo
num grão de areia

a poesia é
o grão de areia
a consciência e o mundo

9 de maio de 2004

a palavra «azul»
não torna o arco-íris mais perene

a palavra «amanhã»
não torna a noite menos escura

a palavra «água»
não torna a sede mais suportável

a palavra «amor»
não torna a morte menos brutal

«azul», «amanhã», «água», «amor»
não são mais do que palavras

mas as palavras são o fermento do poema

8 de maio de 2004

colho da tua boca
o travo aromático das uvas

e bebo na tua voz
o sussuro verde da videira

enquanto as minhas mãos
se embriagam
com o vinho doce do teu corpo

7 de maio de 2004

o sol atiça o branco da cal
que veste as casas
estremunhadas pela bruma

o ar cheira a erva cortada
e o eco do sino traz consigo
o desassossego das aves

5 de maio de 2004

o ventre da névoa

 o ventre da névoa
regurgita lentamente
o perfil das árvores

e desvenda sem pudor
a curva ténue dos montes

4 de maio de 2004

Bailado frenético –
no sopro da ventania
esbracejam as árvores.

Gravetos, folhas e pétalas
riscam o céu num tumulto.