31 de março de 2004

sem paleta
nem pincéis
o gesto aberto da mão
vai subjugando
o corpo virgem
da tela
ao delírio das cores

30 de março de 2004

alheios à deriva
do tempo

esquecidos da opacidade
da noite

abracemos
a ténue claridade do luar

e aguardemos
pelos auspícios do sol

29 de março de 2004

borboletas de metal
sobrevoando
flores de papel

assim as palavras
que não dizes

mas que adivinho
no teu olhar

28 de março de 2004

como flores secas
entre as páginas de um livro

pétala a pétala
se desfazem as memórias
no abismo do tempo

27 de março de 2004


como as ervas daninhas
me agarro às pedras
deste sinuoso caminho

à míngua de água fresca
enterro as raízes
no sedimento rugoso

as parcas sementes
disperso à toa
numa ilusão de infinito

mas os meus olhos
vão nas asas que não tenho
e no voo que nunca farei

26 de março de 2004

o rouxinol canta
junto à minha janela:
- vem aí a luz da aurora

e a lua dorme sozinha
indiferente
ao fervilhar das palavras

25 de março de 2004

a paciência das folhas
tece um vestido
vermelho
sobre o rendilhado
das flores

a ameixieira seminua
estende os braços
ao sol da Primavera

24 de março de 2004

sob o telhado precário
do cedro verde
a erva amassada
denuncia o leito transitório
do andarilho

que todos os dias
refresca os olhos
com o hálito da chuva
na fímbria luminosa
do horizonte

e leva nas mãos
o suspiro do vento
e carrega no peito
um desejo infatigável
de infinito

22 de março de 2004

Num rude afago -
o vento agreste despenteia
os canaviais.

21 de março de 2004

«a emergência livre da palavra*»

(no Dia Mundial da Poesia)

há quem se roje no chão em desespero
há quem erga as mãos ao céu e reze

há quem pinte quadros
há quem medite
há quem árvores plante
livros semeie

eu reservo apenas
em cada dia
um sítio para as palavras
em liberdade
e me entrego nú em suas mãos

sereno
assim enfrento
na exaltação da poesia
o desenlace incerto dos amanhãs

* Da mensagem de Koichiro Matsura, director-geral da UNESCO.

20 de março de 2004

Primavera

Enche-se de risos o bosque
Onde as ninfas festejam
O sol primaveril.

Em louca cavalgada
Sobre o dorso dos faunos
A nudez das musas
Evoca a inocência
Dos tempos antigos.

O sopro de Zéfiro
Vibra na flauta de Pã.

Incitando a arremetida
Selvagem dos sátiros
Dionísio acende
A loucura perene
No ventre das bacantes.

A brisa fecunda
As flores da Hélade
Com a memória do mito.

19 de março de 2004

mar bravo

o baque das ondas
atordoa a noite

a exaltação da espuma
salga o vento agreste

há mulheres
de pele enrugada
nas sombras da praia

guardam a memória
dos antigos náufragos
sob os xailes negros

Praia da Nazaré

18 de março de 2004

pelos olhos do poema
sou actor
e testemunha

no teatro
branco e negro
das emoções

17 de março de 2004

A Nau Catrineta nunca voltou

Ao poeta Joaquim Evónio

aprendiz de marinheiro
lanço meu repto ao mar

espero a Nau Catrineta
que um dia há-de voltar

meus olhos vogam nas ondas
mas não chego a embarcar

e sobre a areia da praia
fico sentado a sonhar

só me restam as palavras
com que teço o meu cantar

16 de março de 2004

no vão da escada
clandestino
o amor

a faina dos corpos
incendeia a penumbra

enche a casa deserta
de súplicas

ofegante
rendido
jaz

o amor
clandestino
no vão da escada

15 de março de 2004

Desejo de ave
no papagaio de papel
voando na praia

e que em vã correria
tenta seguir as gaivotas.

14 de março de 2004

Amanhece o sol
Sobre os galhos partidos
Pela tempestade

Tornam-se douradas
As flores do tojo

Os ternos salgueiros
Encostam as cabeleiras
Em longas carícias

Balançam suavemente
Os cachos dos lilases

O eco dos pássaros
Volta a encher o bosque
De alegres trinados

Árvores flores e aves
Entoam um hino à vida

13 de março de 2004

um piano é uma ave
que despiu as asas
na metamorfose do ébano

entre o marfim e o aço
ensaia o voo
sem largar o solo

12 de março de 2004

Os mártires de Guernica acordaram em Madrid

«El sueno de la razon produce monstruos»
(título de uma gravura de Francisco Goya)


Os mártires de Guernica acordaram
em Madrid

os corpos trucidados dão notícia da guerra
mesmo em tempo de paz

os carniceiros firmam as suas causas no desespero
na morte, no horror e no medo

e prestam culto ao grande bode do baile das bruxas
imolando as mesmas vítimas de sempre:

os inocentes.

Carlos Alberto Silva
11 Março 2004

11 de março de 2004

o vento arrasta o pólen

Ao rei trovador D. Dinis

Num ligeiro remoinho
o vento arrasta o pólen
das flores do verde pino.

E traz consigo a memória
do velho rei trovador:
- Ai flores do verde pino.

Quem suspira mansamente
pelos pinhais do litoral?
Será o vento ou o mar?

Ou serão ainda os ecos
duma cantiga de amigo?
- Ai flores do verde pino.

Perdida na bruma densa
do tempo sem remissão
soa a mágoa do poeta:

- Ainda ouvis minha voz?
Ainda vos lembrais de mim
ó flores do verde pino?

Mas só responde o murmúrio
do vento que arrasta o pólen
das flores do verde pino.

10 de março de 2004

mênstruo telúrico -
a flor púrpura do trevo
sangrando na erva

9 de março de 2004

aqueço a voz
na imperfeita ponte
da palavra

gaivota sem rumo
entre ilhas solitárias

8 de março de 2004

voa borboleta -
os meus olhos vão contigo
de flor em flor.

7 de março de 2004

quando bebias
a água cristalina
dos riachos

e enfeitavas as orelhas
com a alvura
da flor do sabugueiro

e guardavas as palavras
apenas para
os momentos graves

eu ouvia mais
no teu silêncio
que no canto persistente
das aves

6 de março de 2004

acima do arrazoado
do tráfego

o voo delicado
da garça

por um momento
tudo pára

tudo paira

e os olhos batem asa
no rasto oblíquo
da ave

5 de março de 2004

as gotas de chuva
sobre o lírio boquiaberto

contas de cristal
no veludo roxo
da paixão

ou lágrimas talvez

4 de março de 2004

acordam as árvores
num orgasmo vegetal
rendidas ao cio

rodopia no ar denso
a penugem dos salgueiros

2 de março de 2004

volátil é a palavra
tecida
na periferia da boca

libertando-se da tinta
entranhada
nas fibras da página

palavra dita
palavra viva