como resistir ao apelo das ondas
se nos demandam
do mais profundo do ser
se em cada célula do corpo
inscreve a água
o seu testamento
se em cada recanto da alma
brada a voz
do nosso marítimo destino
Da tradição poética oriental recolhi as influências, necessariamente contaminadas pelo contexto cultural que me rodeia. E assim se desfia este «diário poético», feito com as miudezas do dia a dia. [Esta página é redigida em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
5 de dezembro de 2005
4 de dezembro de 2005
a festa dos olhos

(Foto de Carlos Fernandes)
É dia de aniversário e a impaciência da menina mal consegue aguentar as etapas do ritual festivo: o soprar das velas, o cortar do bolo, a abertura das prendas. Com o corpo tolhido pelas convenções dos adultos, a pequena antecipa as surpresas a que tem direito. E os seus olhos irrequietos saltitam como dois passarinhos debicando migalhas sobre a mesa.
olhos de menina -
são estrelas cintilantes
brilhando no escuro
passarinhos curiosos
saltitando sobre a mesa
25 de novembro de 2005
para lá do reino da chuva

para lá do reino da chuva
o dia luminoso
nas asas do rouxinol
sobre as árvores desgrenhadas
o sol
12 de novembro de 2005
testamento onírico

com os cabelos da musa
aconchego a almofada
dou asas à fantasia
sob um céu de marmelada
sinto um certo desconforto
na palavra voluntária
filo pois do azorrague
açoito a fama precária
lá fora o dito ladra
- de nada serve ter medo
que mesmo atrás da máscara
a vida não é segredo
31 de outubro de 2005
o sorriso dos meninos

FOTO: Carlos Fernandes
Para lá do arame farpado, os rostos dos meninos a quem roubaram o sorriso, suspensos numa pergunta: o que foi que aconteceu?
Que loucura foi esta que nem o olhar límpido das crianças foi capaz de suster? Porque é que, depois de tantos anos, tanta dor, tantas lágrimas, tantas palavras sentidas, o arame farpado continua a estar ali, aqui, além, roubando o sorriso dos meninos?
já não há sorrisos
nos rostos por detrás
do arame farpado
apenas um olhar
apenas uma pergunta
22 de outubro de 2005
aberta a crisálida

aberta a crisálida
matinal
a palavra declina o voo
o corpo translúcido
firmado
na solidez da página
que do esforço das asas
sobeja tão só
o lampejo de um clarão
mas basta um sussurro e
[na combustão do poema]
inicia-se a metamorfose
da ave primordial
15 de outubro de 2005
que nos diz a flor do cardo

«a palavra // ergue-se / mas não com destino de estátua / mas de árvore»
Xavier Zarco
que nos diz a flor do cardo
do destino das palavras
cujas raízes fertilizam
a voz doída do vento
árvores de pedra
dilacerando o poema
talvez fósseis
talvez sementes
13 de outubro de 2005
a dança dos pássaros

a dança dos
pássaros
no céu de chumbo
tem um travo de
despedida
que a chuva não
apaga
11 de outubro de 2005
é quando

é quando os estames
assomam
por entre a turfa
e trazem à luz
o vigor da seiva
é quando a maresia
espreita
o declínio da tarde
e simula o voo
opalino das garças
é quando esse ser
antigo
esboça um rito mortal
e o nevoeiro se ensopa
de vozes férteis
é quando as palavras
(sempre as palavras)
se recusam
9 de outubro de 2005
o vento murmura

o vento murmura
entre o arvoredo
versos de saudade
às folhas que voam
no céu das andorinhas
8 de outubro de 2005
5 de outubro de 2005
da impossível palavra

[The Wave - William-Adolphe Bouguereau]
da impossível palavra
arrojada pela maré
do poema cavalgando
o voo raso do vento
só a alvura da espuma
pairando
por um momento
4 de outubro de 2005
ontem era assim

[Wassily Kandinsky - Composition 4]
ontem era assim
a lavra das ondas
ao redor da ilha
o incerto abismo
que não sabe o nome
pecíolos suspensos
na muralha impura
gestos e palavras
protelados
hoje ainda
3 de outubro de 2005
as velas do moinho

«mesmo decepada / a verdadeira palavra voa»
Xavier Zarco
as velas do moinho
lembram aquela toada
antiga e doce
do tempo em que
a terra fermentava
os ecos da enxada
e das palavras
germinavam
asas e fontes
2 de outubro de 2005
quero correr mundo

quero correr mundo
numa melodia
beber das palavras
apenas o sol
saborear
embriagar-me
com o vento das estepes
o aroma acre das ruas
o embalo das vagas
dizer adeus
no deserto
e voltar
1 de outubro de 2005
não sei que presságio

não sei que presságio
me atrai à bruma
ao horizonte submerso
às silhuetas difusas
comungando
a opaca luz matinal
não sei que vertigem
me arroja às pedras
ao recorte das sombras
à sentida penumbra
dos castelos
por conquistar
29 de setembro de 2005
28 de setembro de 2005
27 de setembro de 2005
no âmago da cal

no âmago da cal
se acoita a sombra
que magoa as casas
e fermenta os gestos
na palidez das almas
mordendo a alvenaria
à espera da alvorada
26 de setembro de 2005
O Verão corre ligeiro

(Foto de Carlos Fernandes)
O Verão corre ligeiro por planícies e encostas. Detém-se, por momentos, madurando as searas e os pomares, salpicando de amarelo e rubro os verdes primaveris.
Deixa-se embalar pela ladainha da brisa nas árvores e pelo queixume dos riachos e das fontes à míngua de água. Preguiça um pouco à sombra das oliveiras, observando o voo errático dos insectos. Mas não tem tempo para a sesta, porque logo se lança de novo em corrida, gritando:
- Até para o ano! Até para o ano!
pernas ao caminho
que o Verão não espera
- já lá vai à curva
e o tempo é uma corrida
em que não há vencedor
12 de julho de 2005
9 de julho de 2005
8 de julho de 2005
7 de julho de 2005
amanheceu o sangue

amanheceu o sangue
no coração da cidade cosmopolita
como ontem amanheceu
nos campos da Palestina
como amanhece sempre
em todos os sítios do mundo
onde a insanidade humana
faz explodir bombas
em vez de florir pão
se o cenário muda
a dor é a mesma
e a morte
igualmente estúpida
igualmente cega
3 de julho de 2005
Metáforas do corpo

FOTO: Carlos Fernandes
O palco acolhe sempre com agrado as metáforas do corpo. Desenrolam-se sobre as tábuas os factos imaginados que os gestos tornam reais: o amor e o ódio, a lealdade e a traição, o nascimento e a morte, o riso e as lágrimas. Tudo se revela naquele rectângulo escuro, como se o mundo dos homens coubesse inteiro numa caixa. Depois, aturdido ainda pelo eco das palmas, o estrado vazio aguarda em silêncio pelo quente palpitar das palavras.
revela-se o homem
numa vida imaginada
sobre o tabuado
em toda a sua grandeza
em toda a sua miséria
30 de junho de 2005
memória do estio

Les Glaneuses - Jean-François Millet
a meda de feno
é um grito de sombra
no ermo dorido
onde repousa a tarde
o corpo ressequido
14 de junho de 2005
13 de junho de 2005
quando a voz
(a Eugénio de Andrade)
quando a voz se desenlaça
quando o oiro das palavras
se conjuga em verde e pão
não há morte nem devassa
é só a brisa que passa
e colhe uma rosa em botão
12 de junho de 2005
10 de junho de 2005
5 de junho de 2005
são como madeixas
são como madeixas
ao vento
algas soltas
no vai e vem da maré
as palavras sem destino
vogando
à revelia do poema
ao vento
algas soltas
no vai e vem da maré
as palavras sem destino
vogando
à revelia do poema
29 de maio de 2005
as asas da inocência
Serão as asas que fazem os anjos? Serão as asas?
Sabemos que o ónus do corpo, mesmo disfarçado pela leveza da túnica, impede definitivamente o voo. Mas isso que importa, se a tarde é de festa e os rostos se iluminam de sorrisos?
Sim! De penas, de tule ou de cetim, são as asas que fazem os anjos. Porque, aos meninos, o que lhes falta em divindade, sobra-lhes em inocência.
ao colo da mãe -
o anjo da procissão
não pode voar
as asas que tem nas costas
são de tule e de cetim
Sabemos que o ónus do corpo, mesmo disfarçado pela leveza da túnica, impede definitivamente o voo. Mas isso que importa, se a tarde é de festa e os rostos se iluminam de sorrisos?
Sim! De penas, de tule ou de cetim, são as asas que fazem os anjos. Porque, aos meninos, o que lhes falta em divindade, sobra-lhes em inocência.
ao colo da mãe -
o anjo da procissão
não pode voar
as asas que tem nas costas
são de tule e de cetim
24 de maio de 2005
15 de maio de 2005
11 de maio de 2005
bandeiras de fumo
Vistosa como um paroquiano endomingado, a chaminé domina o horizonte dos telhados. Erecta e vigilante, desafia as intempéries, entre a alvura da cal e a negrura da fuligem. Agita no ar suas bandeiras de fumo, ignorando o turbilhão do vento que logo as dispersa. Como se gritasse na sua teimosia: Ouviram? Aqui vive gente.
bandeiras de fumo
agitam-se num turbilhão
incensando os ares
sobre os telhados da aldeia
o grito das chaminés
bandeiras de fumo
agitam-se num turbilhão
incensando os ares
sobre os telhados da aldeia
o grito das chaminés
22 de abril de 2005
10 de abril de 2005
creio na arte da caminhada
no poder das pernas e dos pés
que se recusam a parar
sulcando a erva densa da savana
enfrentando a aridez silenciosa do deserto
trilhando os carreiros pedregosos da montanha
riscando a superfície gelada dos glaciares
deixando marcas ténues mas indeléveis
na poeira dos caminhos
creio no mistério da caminhada
onde finalmente se desvenda a origem da fala
creio na urgência da viagem
pelo ignoto mundo das palavras
no poder das pernas e dos pés
que se recusam a parar
sulcando a erva densa da savana
enfrentando a aridez silenciosa do deserto
trilhando os carreiros pedregosos da montanha
riscando a superfície gelada dos glaciares
deixando marcas ténues mas indeléveis
na poeira dos caminhos
creio no mistério da caminhada
onde finalmente se desvenda a origem da fala
creio na urgência da viagem
pelo ignoto mundo das palavras
Manual de Culinária
Nem só de poesia vive o homem. E a prosa também é para comer?
Tire as dúvidas no Manual de Culinária.
Tire as dúvidas no Manual de Culinária.
8 de abril de 2005
7 de abril de 2005
5 de abril de 2005
4 de abril de 2005
3 de abril de 2005
às flores do marmeleiro
singela
no seu vestido de chita
uma donzela
acena sobre o outeiro
- enleia-se a brisa
nas flores do marmeleiro
no seu vestido de chita
uma donzela
acena sobre o outeiro
- enleia-se a brisa
nas flores do marmeleiro
2 de abril de 2005
à espera da Primavera
Há uma expressão contida no corpo amputado pela intransigência da poda. Uma expectativa. A árvore aguarda pacientemente que o ímpeto primaveril desperte o cimélio que se oculta no mais recôndito do cerne. E um dia, então, o vigor da seiva revelar-se-á numa explosão de pétalas, saudando o ansiado afago das águas de Abril.
tesouro escondido
no mais profundo do cerne
- à espera do sol -
a árvore tem como certo
o sopro da Primavera
tesouro escondido
no mais profundo do cerne
- à espera do sol -
a árvore tem como certo
o sopro da Primavera
1 de abril de 2005
dia das mentiras
larguei as minhas mãos na água
e elas partiram como duas trutas temerárias
nadando contra a corrente forte
voltaram pouco depois
abanando o rabo de contentamento
tinham encontrado no fundo do riacho
as pérolas irisadas dos teus olhos
e elas partiram como duas trutas temerárias
nadando contra a corrente forte
voltaram pouco depois
abanando o rabo de contentamento
tinham encontrado no fundo do riacho
as pérolas irisadas dos teus olhos
27 de março de 2005
18 de março de 2005
11 de março de 2005
5 de março de 2005
Oráculo marinho
Sentado na duna
sob o pálido sol de Março
indago o oceano
Porque tarda a Primavera?
E o imenso espelho líquido
serenamente se agita
como uma mulher madura
balançando as ancas
e nada me diz
Pergunto a uma gaivota
porque persegue ela
o vai e vem das ondas
se logo em espuma se desfazem
na orla da praia
E num grito me responde:
- Não te esqueças que a vida
é feita de desencontros
e que o vento há-de apagar
o rasto das tuas pegadas.
sob o pálido sol de Março
indago o oceano
Porque tarda a Primavera?
E o imenso espelho líquido
serenamente se agita
como uma mulher madura
balançando as ancas
e nada me diz
Pergunto a uma gaivota
porque persegue ela
o vai e vem das ondas
se logo em espuma se desfazem
na orla da praia
E num grito me responde:
- Não te esqueças que a vida
é feita de desencontros
e que o vento há-de apagar
o rasto das tuas pegadas.
20 de fevereiro de 2005
a fala das mãos
De artista ou de tirano, de criança ou de algoz, as mãos humanas são um prolongamento do próprio pensamento, uma marca da identidade individual. Para o bem e para o mal, o homem recria com as suas próprias mãos o mundo que o rodeia: com elas constrói casas e bombas, semeia trigo e escreve poemas. E quando já mais nada lhe resta, são as suas próprias mãos que ergue ao alto …em prece.
com as mãos te falo
pois está para lá das palavras
a fala das mãos
na escrita muda do gesto
o silêncio ganha voz
com as mãos te falo
pois está para lá das palavras
a fala das mãos
na escrita muda do gesto
o silêncio ganha voz
10 de fevereiro de 2005
espera por mim Corto Maltese
deixa-me beber
do elixir da eterna juventude
e tornar-me como tu
num andarilho sem idade
quero ir contigo
para as ilhas da fantasia e da aventura
a bordo de um velho veleiro
pirata ou talvez não
deixa-me levar só
o saxofone de Garbarek
e a cítara de Shankar
para encher de melancolia
as noites quentes dos mares do sul
quero entregar o corpo cansado
nos braços de uma mestiça sorridente
de olhos de amêndoa
e admirar o súbito poente
do sol meridional
espera por mim Corto Maltese
espera por mim
espera
deixa-me beber
do elixir da eterna juventude
e tornar-me como tu
num andarilho sem idade
quero ir contigo
para as ilhas da fantasia e da aventura
a bordo de um velho veleiro
pirata ou talvez não
deixa-me levar só
o saxofone de Garbarek
e a cítara de Shankar
para encher de melancolia
as noites quentes dos mares do sul
quero entregar o corpo cansado
nos braços de uma mestiça sorridente
de olhos de amêndoa
e admirar o súbito poente
do sol meridional
espera por mim Corto Maltese
espera por mim
espera
6 de fevereiro de 2005
17 de janeiro de 2005
16 de janeiro de 2005
9 de janeiro de 2005
maré negra
(às vítimas do maremoto asiático)
mói o grito cavo
da luz
no frio rosto do aço
perdeu-se o brilho
da lágrima
na fundura do espaço
ficámos só eu e tu
unidos
por este abraço
mói o grito cavo
da luz
no frio rosto do aço
perdeu-se o brilho
da lágrima
na fundura do espaço
ficámos só eu e tu
unidos
por este abraço
5 de janeiro de 2005
1 de janeiro de 2005
ano novo
névoa na campina –
o Inverno desembrulha
suas longas barbas
no horizonte velado
o balido de um cordeiro
o Inverno desembrulha
suas longas barbas
no horizonte velado
o balido de um cordeiro
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